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agosto 3, 2018
Patativa-tropeira: O encontro de Walmor Corrêa e Sporophila beltoni por Paulo Miyada
Patativa-tropeira: O encontro de Walmor Corrêa e Sporophila beltoni
PAULO MIYADA
Conhecimento, dúvida e ignorância
Na dúvida, nós sempre dizemos “sim”. Gostaríamos de saber mais sobre o mundo? Sim. Gostaríamos de dar nome a cada uma de suas partes? Sim, por que não? E seria conveniente separar e organizar cada modo de pensar em cada aspecto da realidade? É, pode ajudar. Então, vamos organizar o conhecimento sobre todas as coisas, classificando-as. Vamos acumular espécimes, nomes, tabelas, dados e análises em bancos de dados que, no limite, teriam que ser tão grandes quanto o próprio mundo, ou muitas vezes maiores que ele, para conter todo o saber sobre tudo? Sim... Nós sempre dizemos “sim”, na dúvida.
No Brasil, o mais antigo relato do desentendimento que nasce, cresce e multiplica-se na tentativa de tudo saber e tudo nomear remonta já ao primeiro texto escrito aqui, a primeira missiva feita após a chegada da nau capitânia da armada de Pedro Álvares Cabral. O escrivão Pero Vaz de Caminha, em carta endereçada ao monarca Dom Manuel I, começa sua narrativa com a descrição do encontro inaugural dos portugueses com os nativos. Diz que eram pardos, nus e que “ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa”. Com tantas diferenças de perspectiva em jogo no choque entre europeus e indígenas, o escrivão atribuiu a incomunicabilidade do encontro ao dado empírico circunstancial: o estrondo das ondas do mar. Parece ingenuidade, mas tem seu valor premonitório, já que o mar ainda quebra todos os dias na orla de Porto Seguro, e nós ainda discutimos os rumos do país sem ter em conta a sapiência dos povos originários deste território.
Com os dois parágrafos acima, tão díspares e talvez tão arbitrários, pretende-se introduzir alguma dose de desconfiança, para melhor refletir sobre as atitudes do artista Walmor Corrêa em seu presente projeto. Agora e sempre, é bom cismar um pouco com o sentido positivo que o senso comum dá aos avanços do saber técnico-científico. Que não se pense, com isso, que será o caso de apostar em alguma sorte de obscurantismo, pois é fato que foi nas engrenagens desse saber que o artista procurou atuar, o que seria impossível se não houvesse uma afinidade real com seus procedimentos e métodos. O que se quer, na verdade, é deixar a mente arredia, escabreada, e lembrar que a verdade não é tudo e que nem tudo pode caber na verdade.
Uma viagem, uma busca, um encontro
A linguagem mais constante na produção do artista Walmor Corrêa é o desenho, ainda que o desenho, para ele, muitas vezes se materialize em objetos, pinturas e instalações. Desenhar é uma forma ancestral de conversar consigo mesmo, assim como é uma maneira moderna de registrar intencionalidades, projetos e rotas. Desenhar também é um recurso indispensável para a condensação gráfica de conceitos e saberes organizados, ou então, ao contrário, de uma dinâmica fortuita para ordenar ideias em fluxo. Trata-se, como atestava o artista alemão Joseph Beuys, de um veículo sempre movente, que transita entre a forma e o pensamento.
Na poética de Walmor Corrêa, o desenho é a guia que deixa convergir dois polos supostamente antitéticos. De um lado, está a imaginação fabular, que observa ínfimos fragmentos do cotidiano e da natureza e neles enxerga um mundo inteiro, habitado por narrativas fantásticas, forças mitológicas ou memórias de fatos que não chegaram a existir (pelo menos no campo objetivo dos fatos). Do outro lado, está o repertório técnico da ciência ocidental, que analisa e decompõe corpos, biomas e territórios, registrando funções, morfologias e causalidades, de preferência a partir de constatações empíricas e concatenações lógicas. O que o artista percebe e demonstra em inúmeros de seus trabalhos é que a diferença entre esses dois polos se deve mais às expectativas com que habitualmente nos voltamos a eles do que às qualidades intrínsecas de seus modos de expressão; afinal, se algo se apresenta como desenho, não há nada que impeça que seus sentidos técnicos e suas premissas fabulares se misturem no fluxo do desenhar.
Sem que resida aí um paradoxo, foi essa capacidade de representação ambivalente que fez o artista ser convidado, em 2014, a apresentar um projeto de pesquisa para uma residência financiada pela maior fundação de pesquisa e difusão científica dos Estados Unidos. Constituído como uma colossal rede de museus e centros de pesquisa, o Instituto Smithsonian possui mais de 150 milhões de itens em acervo e recebe mais de 30 milhões de visitantes por ano. Seu orçamento bilionário inclui convites para artistas de diversas linguagens que possam conduzir pesquisas e projetos que extrapolem os campos metodológicos das ciências.
Walmor Corrêa foi, então, convidado a mergulhar no ponto fulcral dessa rede, o Museu de História Natural de Washington. Assim, o artista que nasceu em Florianópolis, graduou-se em Porto Alegre e hoje vive em São Paulo, viu abrirem-se as portas da maior e mais abrangente coleção de história natural do mundo. É de se imaginar o que isso pode significar para alguém que desde a juventude vive seduzido por desenhos anatômicos, cartografias históricas, pranchas entomológicas e dioramas museográficos. Muito assombro, excitação e – por que não? – alguma dose de intimidação. O fato é que, enquanto preparava-se para fazer o deslocamento entre as Américas do Sul e do Norte, Walmor Corrêa apegou-se a algo que lhe era muito familiar: seu fascínio pela ornitologia, o estudo das aves – esses animais de natureza migratória, alheios às fronteiras territoriais desenhadas pelo homem.
O artista estava prestes a percorrer o caminho inverso da vida de uma das principais referências no estudo ornitológico brasileiro, William Belton (1914-2009). Nascido no Oregon, Belton estudou em Washington, fez carreira internacional como diplomata e, após sua aposentadoria, gravou milhares de áudios de pássaros da região sul do Brasil, muitos deles nunca registrados antes de sua paciente coleta. Isso fez dele uma referência na área, um herói para Walmor Corrêa e, também, para os pesquisadores gaúchos Márcio Reppening e Carla Suertegaray Fontana, que recentemente batizaram, em sua homenagem, uma espécie de pássaro até então não catalogada. A Sporophila beltoni, hoje se sabe, existe há vários séculos, mas nunca havia sido observada com atenção, sempre confundida com outras espécies de Sporophila (conhecida popularmente como patativa-tropeira). Nativa do Brasil, a Sp. beltoni não tinha nome nem identidade até poucos anos atrás.
Foi por essa inusitada lembrança que a primeira iniciativa de Walmor Corrêa, diante da imensidade do arquivo norte-americano, foi consultar se havia alguma Sporophila brasileira no acervo do Smithsonian. A primeira, a segunda e a terceira resposta foram negativas e, em parte, esta exposição - Walmor Corrêa e Sporophila beltoni - é o resultado de sua insistência em abrir arquivos até encontrar um improvável espécime não catalogado no acervo hoje completamente digitalizado: uma ave empalhada em 1820, uma Sporophila brasileira incógnita no fundo de uma gaveta com espécimes latino-americanos. Mais ainda: uma Sporophila beltoni.
Daí em diante, o trabalho de Walmor Corrêa concentrou-se em buscar maneiras de forjar reconhecimento e identidade para esse ser que vivia anônimo e foi morto para fazer parte do saber científico, que, então, o abandonou indigente e sozinho.
Antecedentes, testemunhos e lembranças
Assim que localizou a ave brasileira perdida nos arquivos norte-americanos, Walmor Corrêa comunicou seu achado ao professor Márcio Reppening, que respondeu com grande entusiasmo. Só de ver a fotografia do espécime empalhado, o pesquisador afirmou tratar-se de um animal coletado pelo naturalista austríaco Johann Natterer em 1821. Acontece que as aves empalhadas por esse pesquisador possuem, todas, certo trejeito reconhecível: uma leve inclinação da cabeça que se tornou uma espécie de assinatura de seu trabalho.
A passagem de Natterer pelo Brasil tivera início em 1817, quando o imperador Francisco I da Áustria financiou uma expedição científica ao país por ocasião do casamento da sua filha Maria Leopoldina de Áustria com o príncipe herdeiro Dom Pedro de Alcântara. Formava-se, naquele momento, o laço que redundaria na independência do Brasil em 7 de setembro de 1822, ao mesmo tempo que se criavam condições para a morte e retirada do país de uma série de pássaros nativos, incluindo aquele que seria encontrado quase duzentos anos depois pelo artista Walmor Corrêa.
Em nome da ciência esclarecedora, uma vida foi obscurecida. Levando a sério (no campo da poética) esse apagamento intercontinental, o artista procedeu de forma a legitimar a existência da Sporophila beltoni, sua patativa-tropeira, em terras norte-americanas. Buscou uma audiência com o embaixador brasileiro em Washington. Conseguiu. Foi longe e pediu que fosse concedido um passaporte brasileiro à ave, para que sua existência e nacionalidade fossem reconhecidas. O embaixador engoliu seco, confundiu-se e, quando dissipou as dúvidas sobre o que tinha acabado de ouvir, dispensou cordialmente a continuação da conversa: “nada a fazer, meu filho, nada a fazer”.
A negativa, é claro, bateu em Walmor Corrêa como uma confirmação dos rumos a serem tomados. Certidão de nascimento, carteira de identidade, atestado de nascimento e passaporte são alguns dos papéis que o artista aprendeu a solicitar e produzir a fim de dar fé da existência do pássaro, além de reconhecer-lhe a cidadania, a filiação e o sobrenome. Uma vez mais, desenho fabular e documento gráfico factual se confundem. Até mesmo uma escritura de território a ave recebe, na expectativa de retardar ou reverter sua provável extinção nos anos vindouros.
Noutras obras, como Pintura cladograma (árvore genealógica) e Paisagem natural do Sporophila beltoni, o artista extrapola o âmbito documental e tenta (por metonímia e metáfora, respectivamente) ouvir o que seu novo amigo teria a dizer. Transparece, assim, a empatia possível do artista com o pássaro e deles conosco, que descobrimos, de um só fôlego, ter sido encontrado algo que não sabíamos estar perdido.
O final da exposição guarda, ainda, uma surpresa. Uma patativa-tropeira empalhada é apresentada em uma gaveta idêntica àquela em que estava a Sporophila beltoni do Museu de História Natural. O arranjo das caixinhas de papel que subdividem a área da gaveta, entretanto, é bastante diferente daquele que se verifica nas fotos do dia do “achamento” de 2014. Aqui, suas divisas e proporções reproduzem, na verdade, a planta-baixa da casa em que o artista passou sua infância. Por meio de um curto-circuito afetivo que não se pode explicar nem reproduzir, Walmor Corrêa lembrou, ao ver a ave no fundo da gaveta, de sua própria solidão e seu medo no escuro do quarto fechado, encarados, na época, com uma sensação ainda maior de isolamento. É difícil prever como outras pessoas poderão metabolizar ou não essa memória apenas sutilmente evocada por detalhes na instalação do objeto. O que não se pode negar é que, ao perseguir sua catarse pessoal, o artista acabou por completar uma volta em sua apresentação do pássaro indigente: construir-lhe um lar.
Paulo Miyada