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julho 16, 2018
Ana Kesselring – Corpos estranhos por Ligia Canongia
Ana Kesselring – Corpos estranhos
LIGIA CANONGIA
Ana Kesselring - Corpos estranhos, Paço Imperial, Rio de Janeiro - 29/06/2018 a 26/08/2018
Os relevos de parede de Ana Kesselring dão sequência à pesquisa da artista sobre o que ela chama de “os corpos do mundo”, sobre as possibilidades de representação do corpo em sentido expandido, que não passa única e necessariamente pelo humano, embora sempre pelo orgânico. As peças expostas são magmas de fragmentos de corpos animais e vegetais, compostos após sua moldagem em cerâmica, sua coloração e esmaltagem, processo que inclui, portanto, a coisa viva e sua posterior fossilização.
Esse assemblage de moldagens, em que se sobressai o contato manual da artista com seus meios, remonta à linhagem moderna de Miró, Henry Moore, Noguchi e Gaudí, que se firmou pela busca das origens e do estado bruto das coisas, assim como das relações humanas diretas com a natureza e com o mundo do trabalho. Uma pulsão expressionista é latente na obra, não só pelas feições informes das colagens e pela diluição de suas figuras em um amálgama abstrato, como por criticar, consequentemente, a visada racionalista de certas vanguardas.
O acúmulo e a justaposição de elementos orgânicos fortuitos parecem nos falar de uma construção de urgência, pulsional, ligada ao inconsciente e às associações livres, que retiram da realidade e das coisas mais tangíveis uma forma inédita e desconhecida. Entendidas como uma arqueologia do cotidiano, as colagens da artista tratam da simultânea apropriação e desconstrução do real, tomando seus corpos como “pré-textos” para a formulação de um novo discurso, inscrito no campo aberto da linguagem.
A transfiguração dos seres reais nas agregações obscuras e ambivalentes de Ana Kesselring - ao mesmo tempo, naturais e artificiais, familiares e bizarras, rígidas e sensuais - atesta não somente o estranhamento produzido pela troca de seus contextos lógicos, como, principalmente, pela capacidade poética de fazer a realidade delirar e sair de sua estratificação normal. O que antes eram simples vegetais, frutas, mariscos ou conchas, ganha excentricidade e se envolve em uma atmosfera absurda, comparável à das figuras espantosas de Arcimboldo ou às deformações surreais.
Pensadores admiráveis, como Benjamin e Ernst Bloch já haviam detectado nos processos subjetivos da fantasia expressionista e surreal algo conectado a uma nova concepção do tempo histórico, aos fenômenos de transição que caracterizam uma realidade multi-estratificada e plural. Para Bloch, “a obra expressionista é uma consciência cindida que encontra seu todo nos fragmentos da realidade vivida” 1 , e tal afirmação pode nos levar aos amálgamas de Ana Kesselring, por corresponderem à essa procura de totalidade e de unicidade perdidas, em meio aos pedaços da experiência contemporânea.
O aspecto expressivo e a sensualidade dos relevos da artista, contudo, são submetidos a um corte abrupto em suas superfícies. A mão que molda a cerâmica é, paradoxalmente, a mesma que faz incidir esse corte preciso sobre sua extensão. Partidos, mas simultaneamente organizados em um arranjo horizontal, os relevos entram numa tensão espacial que não apenas contrapõe à sua configuração turbulenta uma ordem inesperada, como conduz, pela horizontalidade, à ideia de possíveis paisagens.
Paisagens que se confundem com naturezas-mortas, estados morfológicos intermediários que rompem os gêneros da tradição, reviramento dos arquétipos figurais da realidade em um universo imaginário e improvável, tal é o mundo de Ana Kesselring, um mundo povoado de seres transversais e de estruturas ambíguas, que moldam e cortam nosso próprio olhar.
JORDÃO MACHADO, Carlos Eduardo – in “Um capítulo da história da modernidade estética: debate sobre o expressionismo”, UNESP, São Paulo, 1998.