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julho 10, 2018
Antes que as traças nos devorem por Paula Borghi
Antes que as traças nos devorem
PAULA BORGHI
Quando éramos livros em idéia, era corpo o que almejávamos. Para ser livro de verdade é preciso corpo de papel, um corpo feito de capa e miolo. Alguns de nós nascem mais com capa enquanto outros com mais miolo, e mesmo com esta discrepância genética somos muito felizes em sermos livros; especialmente livros de artista!
Os livros de artistas são os novatos da nossa espécie, tem muita gente que não nos conhece ou que finge que não existimos. São raras as ocasiões que frequentamos as famosas livrarias, pois nosso ponto de encontro oficial são as feiras independente de impresso. Estamos acostumados a ficar em banquinhas com as pessoas circulando ao nosso redor, nos pegando com a mão molhada da latinha de cerveja enquanto fazem mil perguntas aos nossos autores. É muito bom estar na feira, com amigos de vários lugares do mundo e pulando de mão em mão.
Claro que ficamos super felizes quando alguém nos leva para a casa, ainda mais se nos colocam sobre a mesa da sala de estar, bem à mostra das visitas. Só que chega uma hora que vamos para a prateleira, depois para o armário e depois para a caixa de papelão dentro do armário. Neste momento sabemos que estamos à espera das traças. É o prenúncio da morte.
Alguns de nós chegam a ser mumificados em papel glacine PH neutro com uma etiqueta de identificação. Neste caso as traças não chegam perto da gente, nem ela nem ninguém. É como estar em estado vegetativo à espera de um milagre, só que quando o milagre chega ele vem de luvas de pano branco e nos coloca em uma redoma de acrílico.
Sabemos que é importante que alguns de nós sejam sacrificados como múmia para que a história de nossa espécie seja contada. E por isso não reclamamos (muito) quando nos embrulham com papel glacine PH neutro, porque sabemos que isso é um tipo de abraço carinhoso. O que é inadmissível é seremos deixados como comida de traças. Isso realmente não tem desculpa.
Existem bibliotecas públicas, espaços de arte independente e museus que nos adoram, e nós a eles. Nestes espaços, a maioria das vezes, ficamos bem exibidos e somos frequentemente acariciados. As pessoas chegam, dão aquela olhadinha e depois passam logo a mão na gente. No fim do dia estamos exaustos, marcados por impressões digitais meio as páginas. É uma delícia! É viver a vida intensamente, sem medo de traças. Por isso não tenham dedos em nos tocar, ou melhor, tenham todos os dedos em nós.
Antes que as traças nos devorem, Museu Murillo La Greca, Recife, PE - 10/07/2018 a 11/08/2018