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junho 29, 2018
Suzana Queiroga por Fernando Cocchiarale
Embora tenha se formado em gravura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, e faça incursões experimentais pela escultura, por instalações e performances, Suzana Queiroga é conhecida, sobretudo, como pintora e desenhista.
Tal identidade resulta certamente do lugar fundamental ocupado pela pintura em seu processo de invenção poética, mas talvez também se deva à participação de Queiroga na mostra Como Vai Você Geração 80?, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 1984.
Assim como mostras semelhantes haviam ocorrido tanto em instituições euro-americanas, quanto em suas congêneres internacionais, a exposição do Parque Lage tornou-se um marco histórico da retomada da pintura como meio hegemônico da produção artística brasileira durante os anos 80. Seu teor emblemático, contudo, não decorria somente da guinada proposta pelos defensores da perenidade desse meio ancestral, já que incorporou também a crescente importância das obras de alguns dos artistas pintores que nela foram lançados e que ainda hoje seguem produzindo, com sucesso.
Desde essa época, porém, a pintura de Suzana já divergia de modo flagrante, não somente dos repertórios figurativos da nova pintura, como também do fazer expressivo, da pincelada matérica, do uso da cor intensa e da valorização da potência expressiva do gesto, cuja expansão exigia telas de grandes formatos − características então consideradas pelos discursos de muitos artistas, curadores e críticos como sinônimos da própria “linguagem” pictórica.
Na contramão desses repertórios, a pintura de Queiroga possuía referências difusas do construtivismo. Questionava o retângulo convencional do quadro por meio da produção de suportes-forma de diferentes configurações, pintados por meio de pinceladas lisas uniformes e não matéricas. No entanto, é preciso ressalvar que, a despeito de tais referências, Suzana jamais se interessou pelo rigor da forma geométrica inseparável das poéticas construtivistas:
“A paleta de cores é reduzida, com a predominância de tonalidades delicadas de azuis, verdes, cinzas róseos e violetas. O repertório das pinturas é geométrico, porém uma geometria ligada aos fenômenos ondulatórios, à termodinâmica dos fluidos e à propagação das ondas de luz e à expansão das mesmas num espaço pictórico que tenderia ao infinito.” Suzana Queiroga, anotações avulsas, 2018.
Conforme estas anotações da própria artista, é possível concluir que sob as notáveis transformações experimentadas por sua pintura, permanece, alinhavando-as, a diferença alternativa de sua fatura luminosa em relação à fatura matérica que frequentemente marcou a produção daqueles que promoveram a retomada da pintura na década de 1980. Mas tal diferença não se restringe a estas duas maneiras opostas de pintar. Como um portal, elas nos levam a questões muito mais amplas, como as das intenções poéticas que realmente identificam a produção de um artista, desde o fazer (ou projetar) até a conclusão do trabalho.
Portanto, a fatura nunca pode ser pensada somente no âmbito da proficiência técnica, posto que nela já estão contidas as direções poéticas de uma obra. Para Suzana,
“O tempo é um fator essencial para o meu pensamento artístico, a cor é explorada aqui no sentido de ativar o fenômeno da luz em diferentes frequências cromáticas entregando ao olhar a pulsação do fluxo, visando gerar uma experiência perceptiva de imersão que demanda um tempo estendido para a observação”. Suzana Queiroga, anotações avulsas, 2018.
Nenhum desses caminhos apontados como alvo do interesse da artista poderiam ter sido trilhados por meio da fatura matérica. A pintura de tradição europeia clássica entrecruzou a invenção da perspectiva (voltada para a representação tridimensional do espaço em que circulam os seres vivos e as demais coisas que existem em nosso planeta), com a representação de luz – energia luminosa – e da sombra dela derivada que moldavam, apenas opticamente, o volume das coisas existentes e permitiam sua representação ilusionista, no plano pictórico, pelo pintor. A transmutação da solidez mundana (tátil e óptica) em pura percepção visual (luz e sombra) é, segundo Maurice Merleau-Ponty, um processo em que o pintor é inquirido por aquilo que ele quer pintar:
“Que lhe pede ele exatamente? Pede-lhe desvelar os meios apenas visíveis, pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos. Luz, iluminação, sombras, reflexos, cor, todos esses objetos da pesquisa não são inteiramente seres reais: como os fantasmas, só têm existência visual. Não estão, mesmo, senão no limiar da visão profana, e comumente não são vistos. O olhar do pintor pergunta-lhes como é que eles se arranjam para fazer que haja subitamente alguma coisa, e essa coisa, para compor esse talismã do mundo, para nos fazer ver o visível”. (O olho e o espírito)
Pinturas matéricas, no entanto, deslocam-nos da observação desse espaço óptico-tridimensional voluminoso (Ponty) − representado no plano pictórico por meio da perspectiva e do sombreado − para transportar-nos para a observação da própria materialidade da tinta de que é feita a pintura e do gesto que a configura.
Evidentemente, não podemos esperar da distinção entre matéria e energia formulada do ponto de vista poético-discursivo pela artista, um rigor semelhante ao de sua conceituação pela produção científica. Condutora rigorosa do devaneio, a arte opera no âmbito da sensibilidade poética, mesmo quando esse devaneio pode ser remetido, por analogia, a algum discurso teórico. Entrecruzamentos entre arte e ciência foram e ainda são frequentes, mas irredutíveis um ao outro.
A geometria, por exemplo, foi adaptada pelos pintores da Renascença para produzir, por meio da perspectiva, a representação ilusionista do espaço tridimensional, contudo, o conhecimento matemático oculto pela simulação da profundidade no plano pictórico, característica do espaço renascentista, nunca foi exigência prévia para a contemplação destas obras, pois sua função era representar e não dar-nos uma lição de matemática.
Não há, portanto nenhum motivo para atribuir às teorias científicas o papel de regular a pertinência poética da produção artística. Entre os séculos XV e XVI a pintura europeia deixou de ser um ofício − “arte mecânica”, resultante da habilidade artesanal − para tornar-se, segundo Leonardo da Vinci, uma “coisa mental”. Referia-se a uma arte livre, superior à mera proficiência, posto que concebida mentalmente, por meio da invenção de um sistema de questões derivadas da geometria e dos estudos anatômicos, então compartilhado por todos os artistas. Tal sistema perdurou, com variações, até sua academização nas Belas Artes, cerca de três séculos mais tarde. Foi sucedido pela pintura moderna, em que o plano pictórico tornou-se, para parte significativa dos artistas, referência objetiva para a organização (composição) e ocupação da superfície da tela.
Todas estas referências são passíveis de releitura pelos contemporâneos − apropriações, paródias, citações temático-icônicas, técnicas e formais, são procedimentos habituais, inseparáveis da produção de seus trabalhos. Hoje os artistas buscam seus próprios sistemas como condição indispensável para a compreensão processual de seu trabalho, para sua inscrição no circuito institucional, midiático, para sua difusão pública.
A pintura de Suzana, bem como suas experiências com outras mídias, não possui elementos imagéticos que favoreçam a tematização de questões políticas e micropolíticas demandada por parcela significativa dos discursos curatoriais, institucionais, e mercadológicos hegemônicos.
Tal hiato icônico, evidenciado nos trabalhos, não deve ser aproximado do universo da arte abstrata. As intenções poéticas nele enunciadas não são as mesmas daquelas que moveram o debate em torno da distinção entre figurativismo e abstracionismo, cuja tensão moveu a arte do século XX até a primeira década do pós-guerra.
Para além desses repertórios, a pintura de Queiroga é uma celebração da luz. Não a luz representada com base no conhecimento pictórico construído entre a Renascença e o começo dos modernismos, tampouco aquela de ilustração das teorias físicas sobre a luz e sua propagação.
A luz de Suzana, inversamente, é uma construção processual que atualiza o sistema por ela inventado para nortear sua pintura. Prenunciada pela fatura de suas obras da década de 80, a realidade somente luminosa do cromatismo energético desses trabalhos decorre de um método de pintar e organizar suas telas com base na fatura lisa de faixas de cor luminosas que nos propõem um sistema cuja verdade – a luz causal referida por Merleau-Ponty − encontra-se somente no universo de seu próprio trabalho.
Fernando Cocchiarale
Rio de Janeiro, junho de 2018
Suzana Queiroga, Cassia Bomeny Galeria, Rio de Janeiro, RJ - 06/07/2018 a 15/08/2018