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junho 22, 2018
Histórias de Peixes, Iscas e Anzóis por Paula Terra-Neale
O trabalho de Martha Niklaus opera nas zonas limítrofes dos encontros que se dão entre o individual e o coletivo; entre o real absoluto da experiência e as imagens que engendramos para fixá-las; entre a memória como arquivo e rastro de nossa humanidade e a possibilidade de um futuro utópico construído pela arte.
Combinando elementos da arte contemporânea – conceitual, minimalista e experimental –, incorporando a performance e a videoarte, trabalhando com materiais diretamente extraídos da natureza ou do nosso cotidiano, incluindo sucatas, esta obra não quer se restringir a uma escola, movimento ou tendência artística. O que ela quer é apresentar questões, como as que cita a artista tomando de empréstimo as palavras de Julio Cortázar: que tipos de jogos acontecerão entre nós, como se combinarão as cores frias e quentes, os lunáticos e os mercuriais, os humores e os temperamentos? (Os Prêmios)
A vida e a arte escapam ao nosso entendimento e transcendem os sistemas classificatórios e lógicos, são em si muito mais ricas em experiências e proposições que os sistemas de linguagem ou campos do conhecimento.
Assim é que todos os seres do universo, e mais os conhecimentos, as percepções, as experiências, os tempos e os espaços, enfim, tudo existe por meio de relações combinatórias em que uns influenciam os outros. É disso que a mostra de Martha Niklaus, Histórias de Peixes, Iscas e Anzóis, trata.
O seu modus operandi, a sua estratégia é justamente esta: o embate, o ser ação, o processo entre arte como experiência do cotidiano e arte como reflexão filosófica; entre o projeto construtivo e o fazer experimental; entre uma arte que algumas vezes é pura matéria bruta e outras vezes se apresenta como obras desmaterializadas em traços ou registros. A arte de Martha Niklaus abrange tanto o biográfico quanto o universal, dialoga tanto com as fontes da história da arte erudita quanto com as fontes de nossa cultura popular.
A artista não pertence a nenhum movimento específico ou grupo, mas guarda relações com as produções internacionais iniciadas nos anos 1960/70, como o Neoconcretismo aqui no Brasil e a Arte Povera na Itália; ela tem um forte veio de filosofia da educação (talvez a da tradição experimental americana, em que se afirma a capacidade criadora de todos, de forma que existe um artista em cada um de nós).
A arte de Niklaus é sobretudo dialógica, entre uma inquietante busca de apreender o sentido do mundo e a de fazer sentido no mundo. Ela se produz em diálogo com as comunidades e grupos sociais indistintamente (urbanos, rurais, ribeirinhos, científicos, artístico-culturais, abastados, carentes etc.). E quer descolonizar o discurso vigente que distingue entre cultura erudita e popular. Chega mesmo a querer abolir a noção de autoria nesse afã dialógico.
Os trabalhos de Histórias de Peixes, Iscas e Anzóis refletem esses ideais éticos na sua estética. São trabalhos que em sua maioria questionam tanto o status quo das artes quanto os códigos sociais vigentes, como insuficientes, limitados e ineficazes mesmo. Diríamos então, que desde sua base, essa é uma produção crítica.
Esta obra que se quer decididamente Obra Aberta, em sua busca do diálogo com o Outro, com o Social e com o Aqui e Agora, é, portanto, uma afirmativa de que a arte, esta arte, toda arte, é polissêmica, dialógica e processual. O conceito de Obra Aberta (Umberto Eco) define a obra de arte como algo inacabado e garante ao espectador/participante a liberdade de ressignificação contínua do objeto artístico. Nesse processo de colaboração, sujeito e objeto se re-significam num processo infinito; assim como no entender da artista as pessoas na vida ocupam lugares de “peixes, iscas e anzóis”. O que está em jogo é a possibilidade, mesmo que utópica, de um sistema mais fluido e inclusivo no qual grupos impensáveis no establishment se formam e des-formam. As classificações são tão plurais quantos os próprios seres humanos
Em Rosáceas, partindo da mesma premissa, o critério de agrupamento das pessoas se faz pela predominância da cor no sujeito, criando padrões geométricos. A artista subverte os critérios que caracterizam os grupos em nossa sociedade: ao invés de subdivisões por sexo, gênero, cor da pele, nacionalidade, entre outras, são os grupos dos vermelhos, azuis, brancos, amarelos, pretos que vão determinar a inclusão dos sujeitos. Diferentemente dos critérios excludentes, a cromática do sujeito é totalmente mutável e dinâmica, basta uma troca de roupas para estar dentro de outro grupo, basta que se encontre uma outra associação qualquer em nossa memória ou imaginação, e o sujeito passa para outros grupos, de classificações aleatórias e eletivas.
E a troca de roupa por si só pode vir a tornar o sujeito em um Outro. Não só pela roupa, mas pelo desejo em si, pela mágica do imaginário desse sujeito que se empodera através da proposição artística. Como no projeto Bandeira de Farrapos: a artista funde essas roupas numa forma que remete à representação maior de um país, sua bandeira.
Nessa aproximação com o cotidiano das pessoas e em sua crítica à sociedade de consumo e ao sistema capitalista, essa obra assemelha-se à estratégia política da Arte Povera italiana, a arte pobre, que buscou a desvinculação entre valor comercial e valor artístico. As roupas coletadas por meio de doações feitas pelas butiques são trocadas com os sem-teto. A humildade dos panos rotos e esfarrapados deveria servir de exemplo aos ilustres dignitários que conviveram com a obra nas embaixadas do Brasil mundo afora; ela chegou a ser exibida no Palácio do Itamaraty, em Brasília.
A sua trajetória – a da obra em seu conjunto – não é linear e não indica qualquer tipo de evolução. Se fizermos uma leitura em retrospecto, perceberemos que as obras se relacionam por caminhos entrecruzados, criando jogos semânticos entre si, num continuum. O fim de um ciclo é também o início de outro.
Obras que se referem a outras obras e/ou questões trabalhadas em séries precedentes são recuperadas e retrabalhadas em processos, oferecendo-nos possibilidades múltiplas de leituras e de reflexões críticas, como em um caleidoscópio em que cada giro oferece uma nova leitura.
Se os sistemas classificatórios das ciências e demais campos dos saberes não dão conta de categorizar os processos da vida, novos sistemas dentro de sua produção tornam-se necessários. Criar sistemas torna-se um ritual na elaboração da obra e no processo artístico de Martha Niklaus. Desde as Bolsas de Coleta para a Fiocruz, ela cria, por meio da arte, novos reinos, estruturas, nomenclaturas, ela cria sistemas de linguagens. Nessas “bolsas”, aos reinos animal, vegetal e mineral ela acrescenta o “reino” cultural.
Quanto a sua materialidade, apesar de encontrarmos desenhos, pinturas ou esculturas, de fato pouco encontramos de tinta, tela e papel no que chamamos de obra. A escolha de materiais e suportes não se limita ao horizonte restrito do universo da arte. Encontramos sim um pensamento artístico, uma inquietação filosófica, que se realiza quase que paradoxalmente tanto em obras de uma materialidade exacerbadamente bruta – isto é, de apresentação direta dos elementos como encontrados na natureza: pedra, fogo, água, terra – quanto em trabalhos que provêm de uma materialidade mínima, um gesto apenas.
Alguns são intervenções sutis que a artista realiza, seja na natureza, sobre a natureza ou em prol da natureza. São reflexões a respeito de como atuamos em relação a nossa própria natureza como seres sociais e políticos ou de como atuamos em relação à biologia de nosso planeta. Muitos dos trabalhos nos oferecem apenas marcas, rastros e traços por meio de fotografias e registros fílmicos. Como no exemplo da obra Choque de Cores, em que a questão se deu sobre o uso do espaço público, a praia de Ipanema. A intervenção propôs um resgate do colorido “carioca”, denunciando a imposição da monocromia dos guarda-sóis da orla do Rio para uso de merchandising.
A artista interfere na ordem autoritária e oficial que daria o tom das nossas praias. O carioca não é monocromático, a praia é o território per se da policromia desse povo – o lugar do lazer e da miscigenação de raças, culturas, corpos, gêneros, idades, o Éden da alteridade.
A ação de trocar as cores das barracas, restituindo o colorido às praias, foi registrada por fotógrafos e cineastas. O vídeo torna-se um elemento crucial quando as intervenções têm caráter efêmero, temporal – cronológico. E apesar de as ações também resultarem em séries de gravuras ou fotografias, produtos e objetos, não são os objetos que ocupam lugar de primazia na seleção que a artista faz para a composição de suas mostras.
Assim, se o que integra a ação vem a ser de autoria da artista, ou de fotógrafos amigos, sejam profissionais ou amadores, também pouco importa, quando se trata de ocupar o mesmo espaço expositivo. A artista procura integrar na mostra as várias visões da obra-ação. A relevância da obra se dá no resultado da ação. Arte como ação política e social. Um Choque, literalmente!
Já nos trabalhos construídos com a materialidade bruta do mundo em terra, pedra, água, fogo, bambu, a matéria não apenas representa a natureza e suas forças, ela quer ser a natureza. A natureza que simplesmente é presente no universo da arte, e ocupa o lugar de arte. A simplicidade desses trabalhos que podemos associar ao minimalismo nas artes, na medida em que se trata de redução da matéria, é, entretanto, mais uma transgressão que Niklaus quer operar nas vigentes tendências da escultura minimalista.
A escultura minimalista “brasileira” que imperava quando ela era ainda uma jovem estudante no Atelier do Museu do Ingá, aluna do Haroldo Barroso nos anos 1980, era em grande parte produzida com materiais industriais, metal, vidro, borracha etc., como vemos em obras de artistas escultores seus contemporâneos.
Martha, que deseja problematizar o que lhe é dado como norma, me disse que, ao refletir na época sobre o jargão vigente no seu métier “o negócio é a transa com o material”, vai além e pensa “bom, então vamos às bases disso, vou trabalhar com as propriedades de flexibilidade, por exemplo, do bambu, como ele verga ou não até o ponto de ruptura, ou como as fissuras do barro se dão quando a água seca”.
Dessas esculturas individuais, passa então a fazer uso também de uma técnica de construção que é vernacular, a do pau-a-pique. Mas materiais como terra e bambu, que são facilmente encontrados na natureza e portanto amplamente usados em construções no Brasil, também são encontrados em museus etnográficos.
Construção Popular é um símbolo unificador, que conecta as pessoas não apenas através do espaço, mas também através do tempo. Raspe-se a superfície das elegantes fazendas de café do Brasil e das igrejas barrocas, e as paredes têm em seu interior a estrutura do pau-a-pique. Essa tecnologia era conhecida pelos colonos portugueses, mas também era usada pelos mais antigos habitantes da nossa Terra Brasilis. Esses trabalhos ilustram ou servem como um emblema da universalidade da cultura brasileira. Faz-se necessário por vezes voltar às origens: das coisas, do conhecimento e da arte.
Obras de materialidade evanescente, os registros fotográficos e fílmicos de suas performances refletem a efemeridade de sua ação e a permanência do conceito que fica impregnado em nossa memória por essas imagens que têm uma pregnância de signo muito forte. Como, por exemplo, no vídeo SIM, realizado em um mosteiro budista, que imprime na memória a imagem de um gesto contemplativo e espiritual de aceitação e de gratidão Zen.
O vídeo NAU-NOW é um registro também de uma quasi não-ação, uma reflexão sobre a natureza. O rio que corre e se movimenta num fluxo contínuo impacta com seu ritmo o balanço do barco e das coisas depositadas em seu bojo. Os gestos que a artista realiza são o de deixar cair as gotas azuis em uma taça com água e depois despejar em ação contínua dezenas de copos de água sobre a taça e o pirex transparentes que estão precariamente apoiados na beira de um barco que segue navegando no rio Arapiuns, na Amazônia brasileira. Em NAU-NOW, a cor azul que contamina e interage com a água se dilui em um movimento cíclico, no movimento da água que cai, no movimento linear do barco no rio, até novamente atingir seu estado de pureza e translucidez. A arte em sua potência de expressão cria fluxos no mundo.
Uma das leituras possíveis é que NAU-NOW quer nos trazer consciência da nossa transiência, da nossa impermanência no mundo e da voracidade com que destruímos a natureza, o sentido de fluxo, de energia, de desmaterialização. Este trabalho é uma reflexão ecológica e uma reflexão sobre a natureza da arte como elemento estético, político, social, como linguagem em sua capacidade de “dar-nos a ver” – na expressão de Georges Didi-Huberman.
Esse trabalho está inserido no Projeto Azul, uma “expedição utópica” para a Amazônia de que a artista participou pela primeira vez em 2014 e que organizou em anos subsequentes. Um projeto coletivo que inclui pessoas com interesses afins. Alguns trabalhos são feitos com esse coletivo, como o vídeo Flutuar. Outros são desenvolvidos com escolas dessa comunidade ou em trocas com alunos de escolas do Rio de Janeiro.
Uma parte desse projeto acontece no contato e nas trocas com a população ribeirinha local. A artista-cronista-viajante levava uma maleta com objetos de apoio à sua sobrevivência e dispositivos para desencadear ações, todos de cor azul. Ela diz “fui aprender com eles sobre modos de vida e de sobrevivência”, no que seria uma reversão da linearidade da história da cultura, em que se pretende que os civilizados educam os primitivos, e não há uma relação de paridade.
Esse gesto é quase dadaísta de tão paradoxal, desconstrutivo por certo, uma vez que é o civilizado quem vai aprender com o nativo. É como a maleta de Duchamp, parte de um projeto utópico e também crítico, que atua no próprio sistema de arte. O movimento de ir aprender com os nativos novas formas de cultura significa aceitar que nos tornamos os bárbaros da nossa civilização contemporânea.
Na verdade, grande parte do trabalho da artista dá-se como ação no espaço social. Horizonte Negro vem como manifestação crítica à ocupação da Marina da Glória por um empreendimento comercial que visava transformar o espaço público e tombado para finalidade náutica em polo gastronômico, shopping e área de eventos. Numa tarde de domingo, em parceria e em solidariedade à luta dos velejadores contra a obra realizada na Marina da Glória, Niklaus realiza uma coreografia náutica na Baía de Guanabara. Os vinte e seis veleiros içaram as velas negras e plainaram no cenário de postal da cidade, demonstrando seu sentimento de luto contra uma medida antidemocrática. Horizonte Negro reflete a escolha criteriosa de títulos para suas obras e funde aspectos pertencentes ao repertório da arte e à paisagem com um aspecto político, o luto da cidade.
Em sua instância poética e em sua potência crítica, a arte de Martha Niklaus ocupa sem distinção todos os territórios; ela é individual e coletiva, reflexiva e expressiva, minimalista e brutal, presença e ausência, ação e imagem, proposta utópica e reflexo da nossa condição trágica contemporânea.
Como Martha me disse, “toda a minha trajetória de vida, desde que ainda menina, adolescente, entrei para o atelier da Maria Teresa Vieira, está integrada ao meu trabalho como artista, e eu não separo as minhas diversas atuações como profissional das artes da minha reflexão e produção de arte”.
Uma característica que sempre me surpreendeu, ao longo dessas três décadas em que venho acompanhando o seu trabalho, é a integridade com que a artista vive no seu cotidiano os mesmos princípios de que imbui a sua arte.
Arte e vida se complementam e são indissociáveis. Ao lançar o livro em que reedita a coletânea de exposições que organizou durante uma década como responsável pela programação da Galeria do Lago (Museu da República/RJ), ela faz uma performance na qual a funcionária vira artista. Ali, desfolha as centenas de páginas do livro que contempla essa gestão e então sai de cena. Vai trocar de posição e dedicar-se inteiramente a sua arte.
Considero que a capacidade de transformar esse conflito de funções numa obra, ainda que catártica, revela na arte uma maturidade que foi também conquistada na vida. O entendimento das questões com que vem trabalhando e os sistemas que cria requerem esse tempo.
Ao abordar o universo da arte de Martha Niklaus, me deparo com uma produção que opera nos limites, come pelas beiras, perfaz o malabarismo nessa linha imaginária que limita os campos entre a arte e a vida; acho que a obra de Martha veste a camisa, ou toma a bandeira ‘Pedrosiana’ da arte como “exercício experimental da liberdade” (Mário Pedrosa).
Paula Terra-Neale
curadora da exposição