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junho 19, 2018
Transformers por Ilê Sartuzi
No vídeo Artist Talk de Pedro França, o artista narra a tomada dos meios de edição das imagens por sua mãe, Raquel. Não importa que ela não seja a pessoa que produz em primeira instância essas imagens, mas “capitaliza simbolicamente sobre as imagens”. Em sua narrativa autoconsciente o artista diz que “O vídeo [...] deglute e nivela tudo [...] coisas filmadas por mim, coisas roubadas, coisas encontradas, coisas traficadas”. É sintomático, portanto, que passem a conviver no mesmo espaço da exposição, toscas imagens familiares, reproduções de Diego Velásquez e a camisa do Milan. Nesse achatamento de tudo que se constrói na cultura visual e no momento onde a circulação de imagens ultrapassa quaisquer limites estabelecidos, a noção de autoria e originalidade são arregaçadas. A ideia de propriedade intelectual – tipicamente burguesa – é ultrapassada por um uso livre das imagens. A partir da década de 1960, a incorporação de imagens da alta e da baixa cultura passaram a povoar o panorama artístico, esgarçando os limites de “gosto”.
A apropriação de imagens é uma prática que se intensificou drasticamente nas últimas décadas. Desde então, incorporar imagens das mais diversas origens é uma das características da produção contemporânea, frequentemente misturando diferentes materiais e técnicas. A exposição Transformers, no auroras, destaca o uso diverso da imagem que é articulada por Leda Catunda, Arthur Chaves, Pedro França e Robert Rauschenberg.
O intuito da aproximação dessas obras não é tentar resgatar uma experiência pop, nem somente observar suas inflexões no país, mas investigar os novos paradigmas em que a imagem está posta hoje.
O ato da apropriação significa também trazer o objeto ao momento presente. Esse movimento deve por em questão, assim como todos objetos históricos, a validade e as novas significações dessas imagens no momento em que está sendo convocada, ao mesmo tempo que, num movimento dialético deve resignificar o passado. Dessa maneira, a escrita projetada na obra de Pedro França é, ao mesmo tempo, reveladora e infantil. O texto “fuck the past” é uma imagem tanto quanto os outros elementos, equivale à colagem do cachorro ou a reprodução da pintura de Albrecht Dürer (1471 – 1528). Seu caráter mimado inconsequente, pseudo-anarquista, é confrontado pela evocação do corpo nu que remete a um passado de ouro, ambos carregando uma certa dose de idealismo.
Nas composições de Pedro França, procedimentos de “ctrl+c + ctrl+v”, de sampling e détournement, aproximam uma série de imagens que tendem a serem (des)organizadas em diferentes layers. Os planos de cor que preenchem o fundo, tentam criar, de alguma maneira, uma relação cromática comum para juntar uma série de tentativas que podem parecer inconsequentes. E se o uso desses tipos de palavras aparece com frequência, deve ser menos pela personalidade do artista e mais por uma maneira de lidar com imagens na contemporaneidade. O acúmulo de imagens dispersas que marcava a produção de Pedro França é, nesse novo momento, condensado num único espaço delimitado e ideal que é o plano pictórico da tela.
Os foguetes (1990) de Leda Catunda fazem parte de uma série desenvolvida a partir da década de 1980 chamada vedações. O procedimento de cobrir partes da estampa, ressaltando e descontextualizando imagens trazidas de um arquivo coletivo, acaba por criar uma liga para os elementos díspares que são usados na obra da artista. Esse procedimento de edição busca dessaturar, de certa maneira, um universo abarrotado de imagens das mais diversas. Em Nove e Novinho II (2013), a composição de emblemas, patrocinadores e padrões geométrico-cromáticos é novamente alinhavada pelo uso comum da tinta. Nesses casos, o suporte é o próprio conteúdo da obra, tornando sua “pintura” não mais a representação da coisa, mas a coisa ela mesma.
Portanto, a natureza usualmente plana dos suportes das imagens são por vezes questionadas, em outros momentos reforçadas. A colagem e a maneira como Chaves e Catunda manipulam os materiais, tendem a dar corporeidade à essa suposta bidimensionalidade. A virtualidade das imagens na obra de Catunda e Chaves é confrontada pela materialidade e o forte apelo táctil que suas pinturas-objetos carregam.
Aproximando materiais de naturezas distintas que pareceriam incompatíveis, da mesma maneira em que se aproximam imagens, as composições de Arthur Chaves tencionam a bidimensionalidade tradicional dos objetos de parede, criando elementos vazados, camadas e volumes. O desenho, assume uma posição fundamental para estruturar sua pesquisa com a materialidade de tecidos e plásticos, sobras e dejetos ora mais moles ora mais firmes. Assim, incorporar imagens é apenas mais um processo para criar campos complexos de profundidade informados por um desenho, contraditoriamente preciso e anárquico.
A máquina de costura foi metáfora para o confronto, quase selvagem e automático, de imagens na experiência surrealista. É curioso que Arthur Chaves, se utiliza dessa ferramenta que fixa, mesmo que precariamente, um conjunto heterogêneo de fragmentos, criando estruturas amorfas que vão se desenhando ao longo do processo intuitivo de associação.
Por fim, LA Uncovered #6 (1998) de Robert Rauschenberg, compreende em seu espaço, imagens tradicionais do repertório estadunidense: sobre o enquadramento que a parede de tijolos vermelhos cria na base da composição, uma imagem anuncia a liquidação de uma “famosa loja de departamento de Nova York” que foi a falência. A circulação de imagens através de uma cultura de massa, que seria parte essencial da produção de Rauschenberg, parece estar contemplada nessa série de obras que buscam desconstruir um imaginário do sul da Califórnia.
A natureza diversa de cada imagem é confrontada com outras num espaço em atrito. Seja num scroll que avizinha conteúdos que em nada se assemelham, na lógica de sobreposição de camadas de um vídeo, da relação entre texto e imagem – com a primazia cada vez mais intensa dessa ultima – e a tinta que tenta apaziguar os ruídos em uma espécie de unidade de retalhos. São desses confrontos improváveis que se constroem novas conexões, as ideias (e imagens) raramente se ordenam de modo linear, e essa desordem é parte de sua beleza.