|
junho 6, 2018
Daniel Lannes: Dentição por Moacir dos Anjos
As pinturas de Daniel Lannes são onívoras. Nutrem-se de fontes diversas de imagens e técnicas para ganhar corpo original e denso. Cenas documentais ou imaginadas são tragadas para o interior das superfícies amplas onde as reinventa: algumas, vindas de décadas ou séculos atrás; outras, de quase ontem. Imagens históricas ou banais podem lhe interessar igualmente, desmanchando hierarquias convencionais que dão pouca atenção às segundas. E se é com tinta acrílica que esboça a arquitetura de linhas que evoca referências tão distintas, é com tinta à óleo que, sobrepondo-a à outra, põe suas pinturas à beira do abismo sensual que leva ao que não se conhece ainda. Dessa fome de muita coisa diferente, produz trabalhos diante dos quais o olho e a mente dançam em busca de significados possíveis, movimento que captura ou produz alguns deles sem conseguir traduzir totalmente o que é pintado em discurso ordenado e inequívoco. Faz todo o sentido, portanto, que sua produção recente referencie, de modo menos ou mais direto, o imaginário de deglutição do outro que informa o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, escrito em 1928 e marco crucial do modernismo brasileiro. Daquele que come com fome, diria Glauber Rocha quatro décadas mais tarde, não se esperam modos contidos, mas a violência que marca, material e simbolicamente, a vida nos trópicos do sul do mundo.
Afastando-se de uma arte “digestiva”, própria de quem se acomoda com dietas regradas e suficientes, Daniel Lannes deixa à vista, em seus trabalhos, marcas de mistura e incerteza, em flerte aberto com um porvir diferente, feito mais de experimento do que de repetições do que já foi acerto. Essa disposição ao excesso do invento está presente no arco forte que ata, entre as décadas de 1920 e 1960, modernismo antropófago, cinema novo, tropicalismo e arte experimental brasileira. E também mais para atrás ou mais para adiante, em antecipações e reverberações que adensam a necessidade de fuga da fome e que dão forma incomum à vontade de comer. É nessa tradição que o artista mergulha em suas novas pinturas, em mostra que se chama, apropriadamente, Dentição – nome dado a cada uma das duas edições da Revista de Antropofagia, onde o manifesto acima citado foi publicado pela primeira vez.
Em “O filho pródigo”, a imagem de uma mulher que dá à luz um homem feito remete, no imaginário da produção simbólica do Brasil, à chegada ao mundo de Macunaíma, invenção modernista literária da década de 1920 que reaparece, muitos anos depois, como ação performática no cinema e no teatro brasileiros. Na proximidade da cor clara da mãe e da cor escura do filho que chega à vida há menos sugestão de convívio pacífico, contudo, do que reafirmação das desigualdades e conflitos que marcam o país desde seu início. “Guesa errante”, por sua vez, tem título emprestado de poema homônimo de Sousândrade que, escrito no final do século 19, foi admirado por modernistas e, já na década de 1960, por tropicalistas de vários campos. Mas se o texto original narra a trajetória de acuação e fuga de um adolescente indígena destinado a um ritual que o levaria à morte, a pintura de Daniel Lannes mostra uma mulher quase nua que, tendo atrás de si um homem envolto em sombras, parece se debater contra uma violência iminente. Nada, porém, é muito certo na produção pictórica do artista, que mais sugere do que afirma narrativas, convocando aquele que vê suas pinturas a devorá-las e reinventá-las desde o lugar que ocupa no mundo.
“Carrossel Napolitano” talvez seja a pintura que mais flerta com o espírito tropicalista de deglutição de tudo que está no entorno, quebrando barreiras entre alta e baixa cultura e valorando, dessa maneira, não somente o tido como popular, mas também o considerado “mau gosto”. O estilhaçamento da imagem pintada que cerca a mulher que ocupa o centro da tela parece reverberar um mundo onde não há mais referências certas, situação que confunde insegurança sobre o que existe e liberdade para inventar formas de vida novas. Não à toa, a pintura “A herança Asmat” retrata o autor do Manifesto Antropófago envolto em referências a um povo indígena supostamente canibal portando, ao mesmo tempo, espécie de escudo que talvez o queira proteger – inutilmente – não somente do que é novo e é espanto, mas do desejo infinito pelo que é do outro.