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maio 10, 2018
Caetano de Almeida: brincando com fogo por Tadeu Chiarelli
Caetano de Almeida: brincando com fogo
TADEU CHIARELLI
Caetano de Almeida, Cassia Bomeny Galeria, Rio de Janeiro, RJ - 16/05/2018 a 30/06/2018
Até há pouco tempo a produção de Caetano de Almeida trazia uma espécie de contradição entre o modo como ele executava a pintura e a maneira como a pensava de fato.
Por um lado, sua produção enfatizava ao máximo os valores mais convencionais da pintura ocidental, sobretudo aqueles ainda hoje muito apreciados pelo senso comum: elas explicitavam a fatura artesanal, a prática do pintar, registrando o tempo de sua fatura, a paciência do artista em desenvolver um tipo de trabalho meticuloso que, em alguma medida, fazia valer cada centavo pago por ele. E isso porque, afinal, Caetano de Almeida deixava claro que, para a realização de cada uma de suas obras, ele trabalhava duro, dispondo o seu tempo que podia ser medido por cada traço ou voluta presa às telas. E como se isso não bastasse, o resultado final daquelas pinturas, além de ser o registro do tempo ali dispendido, era também uma feliz reunião de cores entrecruzadas, uma pintura digna de ser colocada em uma parede.
No entanto, o que poucos notavam é que, apesar do caráter trabalhoso daquelas obras, das evidências do tempo ali dispendido até que o pintor desse por concluída suas produções, em todas aquelas pinturas não havia sinais da “mão” do artista.
É certo que alguns olhos mais ingênuos conseguiam perceber certa “expressividade” em uma ou outra tela, porém tal sensação era causada mais pelo uso calculado de cores e/ou ritmos cromáticos, do que propriamente por uma expressividade vinda do seu “interior” ou do “eu profundo” do artista. E isso porque, há anos, a razão da pintura de Caetano de Almeida eram cálculos bem programados de apropriações de esquemas visuais retirados, quer da produção de artistas fundamentais para a arte brasileira ou internacional (Alfredo Volpi ou Piet Mondrian, por exemplo), quer de padrões retirados de tecidos os mais diversos ou de outros objetos utilitários.
Portanto, esse era o nó do trabalho de Caetano: dispender o máximo de tempo de artesania para produzir um tipo de pintura que, apesar do apelo de sua visualidade, não passava de uma imagem esvaziada de qualquer outro sentido, a não ser aquele de se posicionar ali, entre o trabalho manual e a ironia típica da maneira como os conceitualismos refletem sobre as modalidades artísticas convencionais, sobretudo a pintura [1].
Não que o distanciamento irônico, que sempre caracterizou a produção de Caetano, vez ou outra não fosse atropelado por alguma necessidade de romper com o esquema. Uma pintura em que, de repente, a imagem da trama apropriada das cadeiras de palhinha como que explode, não deixa de ser um sinal de desejo – mesmo que momentâneo – de abandono daquela dualidade constituinte de suas pinturas. Desejo esse rapidamente absorvido pela ironia e pela lógica racional que rege a poética do artista, que se transformava em mais um exemplo da maestria do pintor, de sua capacidade de tudo controlar e transformar em índice de seu talento incensurável. O mesmo pode ser dito de suas “pinturas com buracos”. Nelas também a possibilidade de rompimento, de interferência no plano, para apresenta-lo como objeto real – e não como espaço virtual –, era controlado pelo artista. Controlado de tal maneira que aqueles buracos (muito reais) pareciam – e parecem – mais um índice do virtuosismo do artista.
Porém, no meio dessa produção que parecia apenas investir na fatura da pintura, em sua superfície sempre submissa àquele paradoxo mencionado no início do texto, alguns indícios de transformação começam a aparecer recentemente. São como outros sinais de desejo de abandonar aquele território onde sempre imperou a ironia, às vezes mais, às vezes menos dissimulada pela capacidade técnica do artista.
Nessa nova safra de obras chamam a atenção uma determinada tela – Behavior – e algumas aquarelas, aquelas da série “Física”.
Em Behavior’’ é notável como, ao lado do micro relevo vertical produzido por Caetano – e que cobre toda a superfície da tela, subvertendo-a –, o artista deixa se expandir, de leve, uma tinta em tom de vermelho. Lógico que Caetano até tenta controlar o discreto transbordamento de cor, mas, a tinta, insidiosa, acaba percorrendo seu curto trajeto até esvair-se, sem deixar-se brecar pela ação do artista. Como resultado, temos uma tela que é um relevo que sangra. O que significa que, de repente, a pura virtualidade das pinturas de Caetano fica comprometida por uma pintura que se nega como pintura (é um relevo), que parece jogar-se na realidade tridimensional, sangrando.
Tão surpreendentes quanto Behavior, são as aquarelas repletas de furos que conferem às mesma uma corporeidade mais de objeto do que propriamente de pinturas. Os furos são conseguidos por meio do contato de cigarros acesos pressionados levemente sobre o papel. Por mais que Caetano tente controlar cada interferência do cigarro no caráter bidimensional do suporte, atravessando-o com a brasa, o artista está brincando com fogo, um elemento avesso a qualquer tipo de controle.
É claro que Caetano buscaria neutralizar ao máximo o efeito da brasa, que transforma o espaço bidimensional em “coisa” atravessada pelo real. Para isso cola o papel queimado sobre outro papel, retirando ao máximo a potência transformadora do resultado de suas ações sobre o suporte inicial. Mas a desenvoltura do fogo que sempre vai mais um pouco além do gosto do artista está lá. Está ali como que registrando o início de uma transformação no trabalho do artista quando, então, aquela contradição inicial poderá ganhar novos e inesperados rumos.
Tadeu Chiarelli 2018
Nota
1 Se for nosso desejo, podemos requerer uma certa genealogia para essas pinturas de Caetano. Se as pinturas de início de carreira de artistas como Mônica Nador, Iran do Espírito Santo e Edgard de Souza não devem ser pensadas como matrizes da produção do artista (afinal, todos eles começaram mais ou menos ao mesmo tempo), isso não quer dizer que não existam pontos de contato entre a produção de todos. Afinal, Regina Silveira e Nelson Leirner foram professores de todos eles em São Paulo, e se encarregaram de passar para esses artistas uma atitude frente à arte contagiada pelos questionamentos da arte conceitual.
No entanto, penso que essa frieza, esse cinismo, mesmo, que constituiu a pintura de Caetano até há pouco tempo, tem contato apenas com a produção de poucos artistas. No Brasil, aquela de Emmanuel Nassar, não por analogias formais, ou pelo tipo de fatura (se é que podemos pensar em fatura, quando se fala na produção de Nassar), mas pela atitude de ambos em relação à pintura. Em suas produções, a crítica àquela linguagem vem travestida de índices de “artisticidade”, concebidos para subverter o senso comum. Já na cena internacional todo o paradoxo da pintura de Caetano de Almeida me remete direto a Damien Hirst e, indo mais distante, às pinturas de Francis Picabia dos anos 1930/40. Em todas elas, o mesmo comentário cáustico sobre o que foi e o que tem sido a pintura nas últimas décadas.