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março 20, 2018

Carbono Galeria: Maturidade aos 5 anos por Ligia Canongia

Carbono Galeria: Maturidade aos 5 anos

LIGIA CANONGIA

5 anos de Carbono, Galeria Carbono, São Paulo, SP - 27/03/2018 a 19/05/2018

A fotografia revolucionou o mundo da arte, criou um novo paradigma para o conceito de imagem e implicou, definitivamente, a imbricação da arte com a tecnologia. Mais ainda, engendrou, de forma complexa e problemática, a relação entre arte e indústria, e entre arte e mercadoria.

A questão da obra múltipla, ampliada com a invenção da foto e do cinema, nos primórdios do século XIX, tornou-se um fenômeno moderno e contemporâneo de larga escala, incitando proposições teóricas mundo afora e ao longo do tempo. A mais influente delas, escrita pelo pensador alemão Walter Benjamin, em 1936, e tida como a primeira teoria materialista da arte [1], tinha como eixo a perda da “aura” da obra de arte única, a partir do advento das técnicas mecânicas reprodutíveis. Seus estudos avançaram a questão da massificação da imagem, sua banalização nas sociedades e, a reboque, a perda de seu aspecto ritualístico e seu fetiche. Por outro lado, anunciava um novo espírito, associado ao funcionalismo, sinalizando a potência libertadora da máquina sobre a arte, em relação aos elos que ainda a ligavam ao Belo tradicional e à estética contemplativa. A ideia de que a arte poderia estar inserida no cotidiano da vida dos homens, com apoio da indústria e em conluio direto com o desenvolvimento tecnológico superava, em termos históricos, o problema de uma passível perda da identidade dos objetos e de sua fruição aurática. Benjamin acreditava que a reprodutibilidade da imagem, através dos processos mecânicos, acabaria por multiplicar e difundir o trabalho de arte a ponto de sua consagração, vinculada ao mito do original, ser irrecuperavelmente afetada.

O ápice dessa questão surgiria, porém, trinta anos depois do ensaio benjaminiano, com a Pop Art, que explorou ao extremo o caráter da repetição serial, reduzindo o objeto de arte a uma forma estandardizada. A Pop colou a produção artística à ideologia da reprodução, fazendo com que a arte sucumbisse à determinação da mercadoria. Não sem motivos, críticos como Giulio Carlo Argan consideraram o movimento norte-americano como o ponto terminal do ciclo histórico da arte. Paradoxalmente, porém, e apesar de sua aparente imparcialidade, a Pop criticava o destino patético dos indivíduos regidos pela máquina e pelas sociedades de massa, apontando para a neutralização do sujeito contemporâneo. Roland Barthes diz, inclusive, que os artistas pop realizavam, por baixo dos panos, uma crítica oblíqua ao consumo massivo, á alienação da coisa anônima e aos estereótipos. Para ele, a neutralidade pop traía um significado mais profundo, além de sua inocente superfície e, assim, salvaguardava a metáfora, raiz de toda poesia. E não se pode esquecer que Duchamp, pioneiramente, já antevira a preponderância das imposições mercadológicas, provocando a burguesia e as massas com o estatuto do readymade, um objeto ambíguo por excelência, por aderir e ironizar, ao mesmo tempo, o poder da máquina e a vulgarização dos objetos na modernidade.

Fato é que, passados os estudos de Benjamin, as provocações de Marcel Duchamp e o distanciamento da Pop, decorreram-se oito décadas de debate constante sobre a identidade, a persistência e o valor da obra múltipla, sem que, em momento algum, o original tivesse perdido a eficácia de sua aura. Ao invés, e muito possivelmente, foram os múltiplos que adquiriram uma discreta evidência aurática, contrariando as expectativas do filósofo alemão, e sustentando um discurso denso e autônomo. Mais do que um processo de dessacralização da arte e um abalo na autoridade do “original”, a grande questão do múltiplo continua sendo de caráter político, ao tentar alargar a circulação do objeto artístico, ampliar sua penetração no tecido público, e acionar o processo irreversível de democratização da arte.

Joseph Beuys, artista cuja importância na contemporaneidade é indiscutível, foi um grande fomentador da produção de múltiplos, tendo realizado, ele mesmo, dezenas deles. Nada mais pertinente para quem acreditava que a função da arte era “esculpir” a sociedade. Um ser político por natureza, poética e literalmente, Beuys disse:

“Interesso-me pela distribuição de veículos físicos sob a forma de edições, porque tenho interesse na disseminação das ideias” [2].

O múltiplo, portanto, não elimina a experiência espiritual da obra única, mas não possui substrato poético menor do que o dito “original”, e ainda guarda a prerrogativa de dar acesso aos trabalhos artísticos a um leque maior de camadas sociais.

Nos últimos cinco anos, a Galeria Carbono, com o empenho e o entusiasmo de Ana Serra e Renata Castro e Silva, sedimentou-se na cidade de São Paulo como um empreendimento devotado a edições, defendendo a obra múltipla como uma prática independente, regida por suas próprias especificidades e livre do servilismo ao gosto dominante e ao mercado. Atuando para dar ao múltiplo a dignidade e o valor merecidos, e já legitimados historicamente, a galeria se impôs pela seriedade no lidar com as linguagens contemporâneas, pelo tratamento dado aos artistas e aos curadores e, sobretudo, pela forma como respeita e contribui para a “disseminação das ideias”. A Carbono tem a consciência de que a obra de arte múltipla é tema explorado na iconografia e no pensamento universal desde a Revolução Industrial, e que jamais poderia se equipar a uma mera mercadoria. Dedicando ao múltiplo a mesma reverência do sistema exclusivista da obra única, assume a multiplicidade como mais um desafio para o criador e suas inquietudes conceituais. A galeria celebra, portanto, cinco anos de êxito e de resistência às posturas conservadoras, que insistem em ver a criação do múltiplo com visão anacrônica e olhos castrados.

Os números não mentem. Nesses cinco anos, a Galeria Carbono promoveu duzentas edições exclusivas, de cento e cinquenta artistas brasileiros, além de ter realizado vinte exposições, e de ter estabelecido intercâmbio com diversas casas de edições internacionais. Renomados artistas e curadores do Brasil e do mundo participaram de suas mostras, numa adesão que traduzia o reconhecimento consciente de seus valores. Desde o início, ficaram claros os padrões profissionais e a seriedade da galeria, a ponto de se poder mesmo dizer que ela, praticamente, já nasceu madura. E aqui não se trata de precocidade, mas, sim, de respeito e compromisso permanente com os processos, veículos e conceitos contemporâneos.

NOTAS
1 Benjamin, Walter - in “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, Teoria da Cultura de Massa, Saga, Rio de Janeiro, s/d.
2 Beuys, Joseph – citado por Hilary Lane e Andrew Patrizio, in catálogo da exposição “Art Unlimited: Multiples from the 1960s and 1990s”, Arts Council Collection, Londres, 1994.

Posted by Patricia Canetti at 2:21 PM