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março 14, 2018
A letra é a traça da letra por Glória Ferreira
A letra é a traça da letra
GLÓRIA FERREIRA
Letras e abecedários estão presentes em profusão nas diversas instalações da exposição A letra é a traça da letra, de Helena Trindade. Alfabetos latinos que não são segmentais, mas estão em processos de construção, destruição e reconstrução. Os trabalhos remetem-se uns aos outros e estabelecem um amplo campo de Poesia Visual – traço comum na poética da artista há mais de vinte anos.
Se o alfabeto contém, em princípio, todas as palavras, presentes, passadas e futuras, a artista afirma que elas “são flagradas antes de significarem.” Configurações que buscam uma topologia entre o enunciável e o visível, embora o enunciável não se configure como linguagem propriamente. Ou, como assinala Giorgio Agamben: “Lá onde acaba a linguagem, não é o indizível que começa, mas a matéria da língua”.
Adquirindo diversas formalizações, esses alfabetos constituem diferentes instalações. A (a)MURO, que abre a exposição, tem dois muros (des)construídos a partir de estênceis de letras. Eles abordam, segundo a artista, aspectos do funcionamento da linguagem e evocam Lacan, que se refere a um “muro de linguagem que se opõe à fala”. Remetem também ao neologismo lacaniano (a)mur, que conjuga as palavras “amor” e “muro”. Um destes muros fará parte da ação performática Nada terá tido lugar senão o lugar, que destacará, com suas torções, o vazio das letras. Nesta sala, estão também os Vírus, espécie de formas orgânicas, construídos com teclas e hastes de máquinas de escrever, que parecem ameaçadores.
Ainda nesta primeira sala, se fazem presentes alguns outros trabalhos, tal como uma série de fotografias de grande formato, o Alfabeto traço, onde a sobreposição de todas as letras também subtrai as palavras, gerando relevos, rastros, apagamentos etc. A seu lado encontra-se o objeto Tempo para compreender, que consiste em dois relógios com mostradores de letras, sendo que um deles funciona no sentido anti-horário. Em outra parede, é projetado o vídeo D’Écrits & Des Cris (Escritos & Gritos) no qual o corpo da performer, a atriz Ana Kfouri, se presentifica sempre aos pedaços ou por intermédio de sombras e gritos. Ao lançar estênceis de letras de metal, ela vai criando uma espécie de grande partitura formada no chão do galpão onde o vídeo foi realizado.
E, finalmente, ainda nesta primeira sala, temos Floresta de casulos, construída de papel branco e barbante de encadernação, que se relaciona com os Vírus e exige que, em sua passagem, o público sensorialmente nela roce, alterando suas formas. Os papéis têm as formas orgânicas dos que foram retirados de um dicionário etimológico, cujas fissuras foram incrustadas com pequenos tipos de máquina de escrever, dando origem a A letra é a traça da letra da última instalação.
Atravessando a Floresta de casulos, chegamos à instalação (A)MOR, que destaca as letras A, M, O, R, relacionando-se, assim, à primeira sala. O vídeo Afastamentos aborda o afeto amoroso através da ironia, o amor tomado por suas letras pode não ser o que parece... No meio da sala, em uma grande mesa de 3.00m de diâmetro, está Insular, uma escultura construída com os recortes retirados do trabalho A letra é a traça da letra, da última sala. Completa a instalação o díptico A-M-O-R, que coloca em questão alguns momentos diversos do afeto amoroso. São dois vídeos projetados no chão da sala. As pessoas poderão atravessá-los, projetando suas sombras e deixando-se “banhar” pelas imagens.
Em Medida de todas as coisas, na terceira sala, com cerca de 20 objetos, são várias as referências, a começar pelo sofista grego Protágoras, cuja frase “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são” circunda a instalação. Alguns desses objetos remetem aos objetos a de Lacan – a voz, o olhar, o seio e as fezes –, conceituados, grosso modo, como “objetos-causa de desejo” e “algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão”. Em Sob(re) o olhar, por exemplo, o Narciso de Caravaggio aparece numa banda de Moebius e sobre um espelho.
Outros trabalhos desta instalação remetem também ao corpo e à letra, e a diversos autores e artistas, como o poeta catalão Joan Brossa, Heidegger, Derrida, Poe, Courbet e Lygia Clark. Em Carta a Lygia, o Bicho se transmuta em letras articuláveis por dobradiças e demanda que o público construa sua versão da carta=letter=letra. A instalação também traz brinquedos, livros, utensílios e outras coisas que demonstram um vazio ativo, como Oráculo, uma máquina de escrever banguela.
Na quarta e última sala temos a instalação A letra é a traça da letra, com o já comentado trabalho de mesmo nome, o dicionário etimológico. Segundo a artista “existe no movimento que gera a linguagem um trabalho perpétuo de rearticulação que problematiza a questão da origem, uma vez que nesse processo nada se produz que não seja pela transformação”. Nas paredes o Alfabeto traça, realizado com teclas e hastes de máquina de escrever com as letras apagadas, é disposto como em um caderno de caligrafia. Inventado e sem código, dialoga com a destruição do muro da linguagem pelo Vírus, na primeira instalação, e com a apresentação das coisas do amor e do desejo, nas outras salas. Arremata, enfim, o encadeamento de todos os trabalhos.
Para a artista a letra é “um ‘pré-texto’ para um jogo poético”, em permanente arranjo e desdobramento, no limite do indizível. Romper a forma linear da escrita, tratar a letra como vetor de significados, num contínuo trabalho de rearticulação próprio do funcionamento da linguagem, é o que, a meu ver, Helena Trindade realiza em sua poética.
Glória Ferreira
Fevereiro 2018