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março 13, 2018
ARRUDA, Victor por Adolfo Montejo Navas
ARRUDA, Victor
ADOLFO MONTEJO NAVAS
Talvez a quebra de classificações esteja destinada a alguns artistas de forma atávica, ou inclusive acidental, no caso, pela conjunção astral da natureza de uma poética com a biografia das circunstâncias – aquela confluência em jogo de identidade e história, respectivamente. No intenso itinerário de Victor Arruda (50 anos de trajetória artística e 70 anos de vida, como o próprio MAM), aliam-se, portanto, fatores que provêm da arte, da cultura por extenso, mas também da visualidade social, da comunicação ou do imaginário político. Outro sentido de obra mais porosa se reconhece nas formas e construções, nas figurações e apresentações, longe, assim, de uma representação burguesa, complacente, domesticada. Nisto, também, o exemplo do artista mantém ativada – energizada – sua obra como poética em curso, em aberto, como mostra seu atual You are still alive, série precatória que joga com o reconhecimento, a posteridade, a amizade, o mercado... com a própria morte como legado contra a eternidade.
Como pintura crítica, em sua dupla condição, de questionamento do mundo, de coisas que o merecem, e como arte instável, em situação de risco, o corpus ousado desta obra se origina no conflito das formas consagradas não só pela estética como pelo consenso geral. E, nesse sentido, o eros da linguagem se gera junto com a linguagem de eros: com uma onipresença do corpo, de suas pulsões tão internas como externas paralelamente à procura de outra figuração e alteridade. Imagens em dissenso que fazem parte da problematização do gosto.
Ao mesmo tempo, a sua iconografia desde os primeiros anos da década de 1970 se vai assentar por igual em questões conflitantes, de tensão não só estética, sobretudo quando a sociedade mais vigente pratica a hipocrisia como modus operandi, a dupla moral ou algum fundamentalismo que beneficie seus interesses ideológicos ou econômicos. De fato, resulta quase irônico que uma grande parte da obra de Victor Arruda venha a atualizar-se por recentes acontecimentos, fora da demarcação da arte; não só pela defesa insubornável da transexualidade como direito do sujeito do século XXI ou então o registro da decadência da história coletiva, como sobretudo pela denúncia pioneira há mais de quarenta anos da figura perversa do assédio sexual, aliado a outros jogos de costume e comportamento do patriarcado que a cultura ex-colonial promovia sem ninguém na época dizer nada (hoje, desde Hollywood até a publicidade, a denúncia virou assombro e depois notícia). Além dessas perspectivas colaterais, o interessante é que o aggiornamento crítico continua.
Por sorte, o ruído do mundo não conseguiu apagar a razão estética do artista, a pujança e o desconcerto de suas imagens, pois a trajetória conturbada de sua reconhecida e envenenada bad painting abriga sempre, paradoxalmente, uma proliferação de nuances e detalhes culturalistas, quase oximoros visuais (exemplo é sua série de homenagens, diálogos sempre heterodoxos com outros artistas). Não é de estranhar, então, encontrar nesta perspectiva/prospectiva séries fantasmáticas e compactas, composições ambiciosas, telas em grande escala ou então obras específicas (livros de artista, neons, fotografias, desenhos, objetos, projetos) que mostram o lado abissal além de sua pintura, o seu campo mais específico, e no qual não relutou em evidenciar um refinado lado conceitual: apresentar ideias (pinturas com palavras, com textos, pintura para ser pisada ou comida, por exemplo) ou originar estratégias (obras-ação) sem contraindicações. Aliás, a rigor, a mostra evidencia esse raro perfil humorístico e mordaz que chega até limites insuspeitados. Ou o alto valor dado à fragmentação como partilha do sensível e leitura do real ou o peso onírico, psicanalítico, das coisas, a transversalidade e ubiquação mútua dos espaços figurados, povoados, aliados a uma cromática exuberante.
Curiosamente, se a obra de Victor Arruda desafiou as coordenadas das catalogações da época, ou seja, os acervos dos dicionários de arte existentes, em troca, propugnou outra oferta imagética: contra tírios e troianos, inventou uma pintura e um imaginário visual tão sui generis e independentes que estava até deslocado das estéticas geracionais ou limítrofes, nacionais e internacionais (fosse a Geração 80 ou a transvanguarda italiana). Uma poética autônoma que criou sua própria margem – de visualidade e de atuação –, pois nunca fez “pintura para virar verbete”, para assim constituir seu próprio território e vocabulário.
ADOLFO MONTEJO NAVAS
Rio de Janeiro, fevereiro de 2018