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fevereiro 26, 2018
A espessura da cor por Felipe Scovino
A espessura da cor
FELIPE SCOVINO
O que sempre me chamou a atenção no trabalho de Renata Tassinari é a forma como ela explora de modo muito próprio uma autonomia da cor. O que quero dizer com isso é que a cor tende a se desprender, sob as mais diversas circunstâncias, do suporte em que se encontra para alcançar um estado de virtualidade e mais do que isso, pois o que passa a interessar a artista é revelar, diagnosticar e problematizar a espessura da cor. A cor ganha em sua obra uma materialidade, solidez, que a faz voltar – poeticamente, é claro – ao seu estado embrionário, isto é, assim como o pigmento, os trabalhos finalizados da artista transmitem um estado de corporeidade à cor. Em Tassinari, a cor é tátil, atraente e pulsante. Esse estado não necessariamente se confunde com a ideia de fatura. Percebam, por exemplo, que as obras feitas sobre moldura acrílica primam por serem superfícies pintadas, lisas, homogêneas. São superfícies de cor numa aparição ambígua que os aproxima do design mas simultaneamente das pesquisas mais rigorosas e originais da arte, tais como as de Brice Marden, Ione Saldanha, Willys de Castro, além dos color fields de Barnett Newman.
Contudo, a fatura nos desenhos – se é que posso chamar de fatura aquela rasa mas potente camada de óleo e grafite sobre papel – vem na medida certa: a cor aplicada neles se coloca como algo leve, delicado e suave. As cores neutras são preferencialmente as escolhidas para os desenhos (ou seriam pinturas sobre papel?) e acentuam essas características. Tanto nos desenhos quanto nas pinturas sobre moldura acrílica há, guardadas as suas devidas especificidades, diferentes condições de corporeidade, medida e gestualidade. No caso das pinturas, o fator de reflexividade que o acrílico emprega à cor nos faz, quando estamos diante delas, sermos incorporados pelo objeto. E mais do que esse fenômeno físico, ou ainda, por meio dessa particularidade, é que somos jogados a uma experiência de ordem ambígua e extremamente relevante: por um lado, experimentamos a capacidade de vivacidade e memória que as cores nos revelam – não é inadequado pensarmos que os campos pictóricos de Tassinari são paisagens, assim como por exemplo os grids de Mondrian revelavam também o ritmo intenso das metrópoles – e por outro, estamos diante de um painel recortado e frio.
Como afirmou o crítico Rodrigo Naves em ensaio sobre a artista, “nos esforçamos para unir dois fenômenos que, por ora, ainda parecem ter naturezas incompatíveis. Isso pode ser incômodo, mas lembra de maneira notável a vida que levamos” [1]. No caso dos desenhos, a gestualidade precisa na escolha da quantidade de tinta a ser empregada e a figura do quadrante que traça as fronteiras e a visualidade de campos cromáticos elaboram um estado particular: as cores parecem levitar, saindo levemente do plano e alçando um pequeno voo. Esse sobressalto faz com que a cor ganhe uma autonomia em relação ao papel e torne evidente a sua espessura. Ela não é mais pura ilustração do mundo mas passa a habitar o espaço. Fica evidente nesse instante o seu estatuto sensível e não uma função de composição. A cor não é mais parte de um desenho mas possui uma característica própria e autônoma ao estar habitando aquele espaço no plano. E essa condição – independente do suporte, deixo isso claro – cria uma nova relação temporal do espectador com a obra, já que suas obras tornam o olhar mais lento; somos levados a perceber a cor como “qualidade intrínseca, não em relação” [2], como acentua Mammì.
Gostaria de voltar a uma citação que fiz e que, imagino, não é muito usual quando se pensa no trabalho de Renata. É a obra de Ione Saldanha. Se Aluísio Carvão em Cubocor (1960) e Hélio Oiticica, ao longo dos anos 1960, com os Bólides e Parangolés levaram a cor a um estado de imanência nunca antes visto na arte brasileira, Saldanha revelaria a fisicalidade da cor em pequenas ripas. Eis o salto da cor para o espaço. Não acho que se trata de uma influência direta – a relação entre Saldanha e Tassinari – mas de poéticas que souberam articular pintura, lirismo, prazer estético e acima de tudo a autonomia da cor. As ripas, bambus e carretéis de Saldanha possuem um dado cru, uma “atenção para certos padrões da arte popular com sua decoratividade difundida no cotidiano” [3] e uma artesania que passam ao largo da obra de Tassinari, onde se percebe um acabamento mais limpo e sintético no uso dos materiais. Entretanto, a forma como cada uma dessas trajetórias foi pautada pelo rigor construtivo e por uma sensibilidade cromática me chamam a atenção. Há em ambas, à margem da espetacularização e da torrente de informações, uma mistura incomum de informalidade e despretensão.
Gosto de enaltecer outra ambiguidade na sua poética que só faz aumentar a sua potencialidade: ela traz irmanado um repertório econômico, preciso e mínimo de recursos materiais e um máximo de meios expressivos e líricos. Em tempos de uma desatenção acelerada, as obras da artista nos levam a nos determos sobre os detalhes, as minúcias e as singularidades de um gesto sobre o papel, a espessura do óleo ou a fresta branca (o “pulmão da obra”, o risco por onde corre o ar) que percorre os limites da pintura sobre a superfície de material acrílico transparente. As experimentações no papel e na tela sempre aconteceram de forma concomitante no seu trabalho. No início da sua trajetória, ainda nos anos 1980, a aparição de madeiras cortadas e lixa já nos mostram essa qualidade de pulsação do material, dele partir do plano para o espaço, como se a tela não desse mais conta da quantidade de relações estabelecidas (com a cor, a forma e a sua própria estrutura), inchasse e passasse a vibrar. Nas obras em papel essa relação continua, mas é a cor quem estimula essa vibração. É uma cor-luz, que vibra de forma tão intensa que o suporte em que ela se encontra logo revela-se limitado, não contem essa experiência dentro dos seus limites, e a cor acaba por se expandir para além do suporte. É mais uma característica dessa operação de transmitir espessura à cor. A tinta, matéria que confere corporeidade à cor, fenomenologicamente se transmuta em pele. Uma leve bruma que percorre a superfície e especialmente nos desenhos confere rugosidade ao papel. Nos permitir que vejamos textura, sensações, corpos, peles na pintura é tornar os nossos olhos mais sensíveis para o mundo. É diminuir a dureza e a incompreensão que nos cercam e nos fazem ficar, mesmo que involuntariamente, cegos às atrocidades do cotidiano.
Como escrevi anteriormente sobre o seu trabalho [4], a tela e o papel, pouco a pouco, mas de forma consistente e precisa deixam de ser simplesmente suporte para a ação da tinta e passam a ser partes constituintes da própria obra. A colagem, o uso de recortes da madeira e posteriormente o acrílico sendo oculto pela tinta para atingir o trompe l’oeil ou uma imagem que engana os nossos olhos, sustentam a ideia de que é ali, no próprio espaço sacralizado da pintura, usando os elementos que dão forma a ela, que ela própria - pintura - se faz. Talvez o seu trabalho não seja uma pintura que dialoga com a poética construtiva mas que a desconstrói.
Se nos últimos anos, sua produção atentou para a materialidade da pintura, com pinceladas espessas - uma textura muitas vezes propiciada pela encáustica -, na fase atual o que parece interessar, com mais força, é o que venho chamando de espessura da cor. A massa de gestos e tons em certa medida é substituída por uma precisão e apuro, especialmente nas pinturas em que faz uso do acrílico.
Suas pinturas mais recentes se relacionam com o espaço através da fratura ou da falta. São como limites indefinidos, bordas abertas, molduras arrebentadas. Confundem-se definitivamente com o espaço, pois o plano já é algo conquistado. São formas que se traduzem como fios de luz. Nesse momento, notem os limites das pinturas sobre moldura acrílica, pois não são exatamente limites mas superfícies imantadas que suavemente se apropriam do espaço. Mas ao contrário de boa parte dos antecedentes concretos e neoconcretos, esse salto para o espaço se dá pela cor e não exatamente pela forma. Mais uma vez aqui transparecem as poéticas de Carvão e Oiticica, mas deixo claro que as especificidades de cada um desses artistas são bem distintas das de Tassinari. Por exemplo, Oiticica pensa a cor como um corpo (metafórico) que inclusive se confunde e é atravessado por outro (real). Pensem na exploração pelo espectador dos Penetráveis e como aqueles labirintos, ninhos, portas e feixes monocromáticos são atravessados, tocados, cheirados, apropriados sensorialmente sob as mais diversas formas. Mas no caso de Renata a cor não quer se confundir em ser corpo, ao menos nessa perspectiva de Oiticica, mas buscar um lugar próprio, que reflita sobre as suas propriedades de forma autônoma. Estão lá a sua independência em relação ao plano, a sua falsa condição de aparição, pois é a cor se transformando em luz, uma espécie de campo cromático que avança para além daquela zona em que graficamente se encontra. É o fio branco dos limites do acrílico que a artista deixa transparecer que produz uma ligeira volumetria à superfície da pintura. E esse estado promove a ilusão para os olhos do espectador, provocando uma alternância de posições entre figura e fundo. A pintura revela esse constante estado transitório.
Transmitir esse caráter expansivo à cor definitivamente não é pouca coisa. Transformar a cor em algo que magicamente avança em direção ao espaço e que em outros casos, dentro da sua obra, concretamente ganha uma espessura ou dobra, como é o caso das pinturas recentes que fabricam uma imagem, como escrevi há pouco, da fratura, são características notáveis no trabalho da artista.
Outra lógica interna de suas pinturas é a maneira como tornam visíveis espaços arquitetônicos ou objetos do cotidiano que são transpostos para uma linguagem abstrato-geométrica, como é o caso da série Lanternas. Os módulos em acrílico são dispostos na parede, lado a lado, verticalmente, com um intervalo curto entre eles, e a superfície pintada de acrílica e óleo em tons monocromáticos transmite a sensação de um bastão de luz aceso. A cor, nessa série, possui volume, densidade e espessura. O título nos induz também a pensar nessa relação muito própria entre luz e cor que o trabalho de Tassinari possui. A série sintetiza a pesquisa da artista, já que nela a cor é uma matéria vibrante que tende a ganhar o espaço.
Notas
1 NAVES, Rodrigo. Renata Tassinari: a cor e os dilemas da experiência. In: TASSINARI, Renata. Renata Tassinari. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2009, p. 13.
2 MAMMÌ, Lorenzo. [Sem título]. In: TASSINARI, Renata, op. cit., p. 33. Publicado originalmente em Renata Tassinari, catálogo da exposição, Galeria Millan, São Paulo, 1989.
3 OSORIO, Luiz Camillo. Ione Saldanha: o tempo e a cor. Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2013, p. 23.
4 Cf. SCOVINO, Felipe. [Sem título]. In: TASSINARI, Renata. Renata Tassinari. Rio de Janeiro: Multiplo Espaço Arte, 2014. Catálogo de exposição, s/p.