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fevereiro 6, 2018
Sob o Sol (negro) dos Trópicos por Bernardo José de Souza
Sob o Sol (negro) dos Trópicos
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
Daniel Frota - Sol Preto, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS - 04/02/2018 a 08/04/2018
Realidade e ficção constituem esferas análogas quando se lança uma mirada exógena sobre a história ou mesmo sobre a ciência; funcionam como dimensões superimpostas no processo de articulação semântica que nos permite produzir conhecimento a partir de informações trazidas à tona em contextos sociais e culturais tão específicos quanto diversos.
Distantes no espaço - e no tempo? -, as realidades europeia e sul americana em princípios do século XX guardavam rarefeita correspondência quando em análise o debate científico e filosófico a orientar os rumos da humanidade diante das modernas noções de avanço e progresso em voga nos círculos eurocêntricos. A bem da verdade, as capitais "terceiro-mundistas" rezavam pela mesma cartilha cartesiana que as metrópoles europeias, embora a história fosse outra quando investigado o comportamento e o sistema de crenças das pequenas aglomerações urbanas do interior do continente latino-americano.
No ano de 1919, ao passo em que cientistas, físicos e astrônomos europeus intentavam validar a teoria da relatividade postulada por Einstein, o povo de Sobral - então uma cidadela a ocupar diminuta porção meridional do globo terrestre - ainda ruminava noções de pecado e punição à luz da Igreja e das crenças religiosas. Em tal contexto histórico de brutal apartamento científico e cultural, a luz como elemento-chave à comprovação da teoria da relatividade haveria de produzir imensas zonas de sombra sobre a população do sertão brasileiro, uma terra castigada pela seca inclemente e pelo sol à pino, que alguns diriam turvar as ideias dos homens debaixo de tamanho e insuportável calor, enquanto outros, com maior lucidez, atribuiriam a "falta de luzes" daquele povo ao acachapante peso do obscurantismo religioso e da tutela do coronelismo e das oligarquias agrárias que historicamente submeteram o país ao atraso econômico e cultural.
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Situada entre a pesquisa histórica, a investigação plástica e a especulação filosófica, o projeto Sol Preto, de Daniel Frota, se debruça sobre a façanha científica de astrônomos britânicos em terras tropicais - a saber, na cidade de Sobral -, que resultou na validação do maior pulo do gato na história da física moderna, qual seja, a da unificação das noções de espaço-tempo. Mas o interesse do artista, para além das questões científicas específicas de tal teoria, reside na colisão de dois mundos em tese estanques, a qual acabou por resultar em um sem-fim de causos e anedotas reveladoras das perspectivas críticas - ou mesmo acríticas - de ambas civilizações. Não obstante, o conjunto de fatos e factóides a embalar a aventura de Frota, em seu retorno à terra natal de seus antepassados, constitui uma exploração antropológica eivada de referências ao plano político-filosófico maior, qual seja, aquele onde estão dispostos os peões de um tabuleiro de xadrez que ora se movem sob a égide da mitologia, ora sob os auspícios da ciência.
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À sua chegada à cidade, seguiram-se encontros do artista com personagens locais e algumas visitas a espaços referenciais à história do eclipse solar que fez o mundo de Sobral escurecer por uma fração curtíssima de tempo, relativizando assim não apenas as leis da física formuladas até então, mas toda a dinâmica política e cultural daquele povoado. As superstições fomentadas pela imaginação dos nativos forjavam um cenário de tintas apocalípticas, as quais se viam adensadas pelo discurso da Igreja, via emprensa local, que jamais de todo desfazia a mística religiosa em torno do eclipse e da expedição de astrônomos, uma vez que optava por "traduzir" o discurso científico em textos "ïnformativos" que, em alguma medida, reiteravam o fundamentalismo catolicista. A orientação da Igreja era a de preservar Deus acima de qualquer prova em contrário trazida pelo acúmulo de conhecimento científico.
Dentre os expedientes a serem utilizados pelos sobralenses para driblar as forças virulentas do eclipse que se imporiam de maneira letal sobre a natureza - assim acreditava a população local -, alguns seriam, potencialmente, prejudiciais ao sucesso da experiência científica em jogo, qual seja, a de comprovar por meio da curvatura dos raios solares, obliterados pela lua que se antepunha ao astro rei, a famigerada lei da relatividade. Era nesta toada que nativos pretendiam bater panelas e fazer barulho no afã de impedir a morte dos animais que, segundo dizia a lenda, dormiriam um sono sem fim sob efeito da punitiva escuridão a envolver a cidade em seu manto sepulcral.
Ao transitar entre o simbolismo latente no embate entre as forças iluminadoras do ciência e as sombras do catolicismo e da superstição, recolhendo pistas ao longo de sua jornada rumo ao passado, Frota relativiza as perspectivas emancipatórias da ciência à medida em que investiga os traços de pueril humanismo a ecoarem desde um continente europeu que enxergava na miséria e aridez do agreste nordestino tão-somente a possibilidade e vislumbrar um fenômeno natural cujo capital científico jamais seria retornado a Sobral na forma de desenvolvimento econômico e cultural. Neste sentido, a seca da caatinga foi de enorme serventia aos propósito dos astrônomos, embora os frutos do avanço promovido pela descoberta tenham restado no passado daquela cidade como não mais que uma miragem, apenas um dado sui generis na história de Sobral.
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Segundo Giorgio Agamben, "vivemos em meio à escuridão do presente" **, diante de um tempo que jamais se revela de maneira absoluta, resultado de processos históricos que se deram em dimensões paralelas, carregados da latência de um futuro imprevisível, disforme em sua totalidade. Nas palavras de Frota, "A imagem da 'escuridão do presente', segundo Agamben, se dá através de uma luz que não nos alcança. Em um universo em expansão, onde as galáxias se afastam de nós em uma velocidade superior a da luz, as luzes emitidas por elas nunca chegam até aqui. Por isso vemos escuridão no céu. Essa analogia descrita por ele fala sobre nossa dificuldade com o descompasso que é viver e ter uma compreensão histórica do nosso próprio tempo. Como se nosso corpo fizesse sombra sobre o lugar onde pisamos. Mas também revela o lado positivo da sombra, como uma luz que está permanentemente viajando em nossa direção. Mas também sabemos que essa unidade que chamamos de “presente” não é construída homogeneamente. Uma pluralidade de descompassos coexistem, se sobrepõe e às vezes se chocam."
O que se dá no ano de 1919 na cidade Sobral poderia ser interpretado, por analogia, à luz da tese desenvolvida pelo geógrafo Milton Santos, segundo a qual o espaço é resultado da "acumulação de camadas desiguais de tempo"; em se tratando do episódio em pauta no projeto Sol Preto, o que vemos é o descompasso em que a humanidade logra levar à cabo sua nem sempre virtuosa aventura sobre a superfíce da terra. Enquanto a ciência ganhava contornos ficionais ao homem do nordeste brasileiro, as crenças religiosas eram percebidas de maneira recíproca pelos astrônomos europeus.
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Ao longo de seu périplo por Sobral, o artista tropeçou em pistas tão reais quanto falsas, algumas das quais emblemáticas dos matizes ficionais da história escrita ou mesmo oral - esta última constituido a força maior da autoafirmação de povos que se moveram no curso da história apartados das letras acadêmicas e da frieza científica.
Lá pelas tantas, ao visitar um dos museus da cidade, Frota depara com duas pedras de quartzo iguais em sua forma, ainda que diversas em seus tamanhos. Em uma dessas coincidências que condimenta a investigação histórica de matizes ficcionais, segundo a memória oral do povo sobralense, as tais "esculturas" teriam sua origem atribuída ao povo Inca, e representariam a lua e o sol, justamente os dois astros em questão no evento que se tornou objeto da pesquisa quer dos astronautas ingleses, quer da de Frota em suas respectivas missões no sertão brasileiro.
O resultado da pesquisa dos cientistas em 1919 é conhecido pela porção ilustrada do mundo contemporâneo, embora ainda restem opacos para a maior parte da população do globo em princípios do século XXI; por outra banda, os frutos da missão do artista acabaram por ganhar contornos fictícios em sua teia de mistério científico e ironia política.
Na exposição apresentada na Fundação Iberê Camargo, o visitante pode tomar contato com frações de tempo e realidades romanceadas pelo artista em sua narrativa que ora privilegia a forma, ora o conteúdo, calando supostas verdades e tornando visíveis certas passagens da história que hoje amalgamam um mundo que jamais logrou equiparar no tempo e no espaço as trajetórias tão díspares quanto diversas dos povos europeus e americanos. Os descompassos do processo histórico que embalam a humanidade apenas se tornam ainda mais evidentes na obra de Daniel Frota.
Escultura, texto, imagem, mobiliário e luz articulam na exposição um campo de sentido que encontra-se aquém e além da História, impermeáveis em sua mudez estética, apesar de eloquentes em sua expressão ficcional. A austeridade com que a instalação foi montada é perturbada pelo dado de realidade que irrompe o espaço através da brecha temporal aberta pelo documentário exibido em uma TV no chão do espaço expositivo, a qual nos permite acessar, mais uma vez, pela via da história oral, um mundo que se constrói sempre diante da leis da visibilidade e da invisibilidade - ainda que a matéria visível seja da ordem do audível, isto é, conformada a partir de palavras - palavras essas que constroem, pervertem ou mesmo traem o sentido específico de seus termos.
Esclarecedora em seu mutismo aparente, Sol Preto nos lança em uma viagem no tempo e no espaço, numa dimensão que corre em paralelo a essa que chamamos presente. Pontos em uma rede infinita de possíveis articulações sinalizam múltiplos "buracos da minhoca", outra figura usada pela física para descrever as pontes que unem um espaço a outro, ou um buraco negro a um buraco branco. Enquanto margeamos o conhecimento sobre o universo, e sobre nossa própria história, aguardamos o fim dos tempos em épica expectativa, ou mesmo o eclipse que acabará nos cegando por completo ou, quem sabe, nos tornando clarividentes.
Bernardo José de Souza
* AGAMBEN, GIORGIO. “O que é o Contemporâneo?” In: O que é o Contemporâneo? e outros ensaios; [tradutor Vinícius Nicastro Honesko]. — Chapecó, SC: Argos, 2009.
** MACHADO, MILTON. "Pensando o Espaço do Homem." - São Paulo, SP; Edusp, 2012.