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janeiro 19, 2018
Marília Bianchini - Matéria, paisagem por Gabriela Motta
Marília Bianchini - Matéria, paisagem
GABRIELA MOTTA
Geralmente é assim, uma fotografia se coloca diante de nós para que seja vista. Sabemos que nem tudo é visível, esse é o jogo, mas alcançar aquilo que vemos (e mesmo aquilo que não vemos), depende do quanto nos dispomos aos abismos das imagens. Profundidade de campo, cor, relações entre elementos, luz, temperatura, são alguns dos aspectos que vão sendo percebidos, colecionados pelo observador que deseja interpretá-las.
Alguém irá lembrar que não estou considerando a grande quantidade de meios e suportes da fotografia na arte contemporânea, que a imagem nem sempre é, sozinha, o assunto que se coloca. Sim, temos as imagens projetadas, como em alguns trabalhos de Elaine Tedesco; as fotografias impressas em tecidos, como na obra de Alexandre Sequeira; ou em transparências, como em Miguel Rio Branco; temos ainda, entre tantas outras possibilidades, as fotografias ampliadas em post-its ou papel higiênico, como em trabalhos de Iris Helena. Em todos esses exemplos, essas imagens compõem situações que lhes ultrapassam. Encontram suportes e circunstâncias que, muitas vezes, acentuam ou acrescentam significados à própria imagem fotográfica em questão. De todo modo, não há ‘um e outro’, imagem e suporte como duas forças independentes. São corpos sintônicos reverberando suas possibilidades de leitura.
E quando a imagem é e não é o que se oferece para ser visto? Quando as imagens, especialmente imagens de paisagem, de uma mesma paisagem e suas variações, parecem apontar sobretudo para o olhar do fotógrafo?
Em um primeiro momento, é para onde nos conduzem as fotografias da Marília Bianchini. Apontam para um olhar que insiste em re-olhar, em ver de novo e com a surpresa das experiências inaugurais. Já sabemos, intuímos pelas imagens, que um rio e seus trânsitos, o céu e suas nuvens, e um jardim, com suas folhas, pássaros, gravetos, são o assunto e a mirada insistente da artista. Agora, se muitas dessas imagens nos fazem pensar naquele que as registra, elas nos fazem também observar aquilo que se oferece ao olhar: um pássaro que nos encara, quase íntimo da câmera que o captura, uma nuvem e sua história. E é nesse jogo entre o que é visível e o que é imaginável, que elas, as imagens, revelam seus mais incisivos signos, seus posicionamentos.
Marília, mais do que navios e tempestades, imprime no papel a atenção que dedica à passagem do tempo e a sua condição transitória. São fotografias impregnadas de duração, de observação, e, por conseqüência, também de um partido, de uma partilha. Defendem e nos oferecem, mesmo nos fluxos acelerados do cotidiano, o espaço de uma relação com o mundo baseada na troca e na observação, algo que só pode ser construído com o tempo e no próprio passar do tempo.
Mas há na exposição um outro conjunto de trabalhos, de imagens que, simultaneamente, reforçam e contradizem alguns desses comentários. São aquelas fotografias ampliadas em papel artesanal. Folhas, veleiros, revoadas de biguás, disputam nossa atenção com o suporte absolutamente manifesto em que se encontram impressas. Contradizem-nos porque são imagens cuja importância, pode-se dizer, é equivalente ao papel do suporte. Poderiam ser encaradas, como sugerido em relação aos meios e suportes da fotografia na arte contemporânea, como corpos sintônicos, que atuam juntos na construção de sentidos.
Ainda que, de fato, possamos nos deixar levar pela contaminação recíproca entre as sensações provocadas por um e por outro – a fragilidade do papel artesanal e sua transparência com o apagamento das memórias e a melancolia de imagens aquáticas, o vôo das aves e as folhas esvoaçantes em uma composição temporária –, com o tempo (sempre ele!), vem à tona outro tipo de aproximação entre suporte e imagem. Um tipo de aproximação que irá nos conduzir, novamente, reiteradamente, para um lugar de partilha.
Através de alguns desses trabalhos, é possível reconhecer que imagem e papel são, afinal, feitos da mesma matéria. A folha-imagem é a própria folha-fibra, que foi cozida, moída, lavada, processada, até se transformar na trama-folha de papel. E a passagem do tempo, que eu defendia estar impressa nas imagens de navios e intempéries, é também a matéria necessária da transformação dessas fibras e folhas.
Assim, além de uma mirada insistente – variações de uma mesma paisagem –, e de um assunto que revelam – a passagem do tempo e a permanente transformação de todas as coisas –, essas imagens assumem agora a sua materialidade. E assumir sua materialidade aqui é tornar-se acessível, possível de ser alcançada e, sobretudo, partilhada.
Na medida em que esses trabalhos expõem tanto sua potência de imaginação quanto sua organicidade, papel e imagem parecem assumir-se como igualmente desimportantes em suas especificidades, aproximando sem nenhum pudor ou pedantismo, o artesanal e o artístico. E é justamente através dessa indiferenciação que o trabalho de Marília nos convoca outra vez, agora a rever nossos conceitos sobre essas classificações. Se não há respostas para as provocações do trabalho, há, nele mesmo, uma vontade de seguir conversando e expondo abertamente suas engrenagens.
Em nossas conversas, durante o desenvolvimento dessa exposição, reconhecemos que o conhecimento dos processos de produção, tanto das imagens quanto do suporte, no caso dos trabalhos da Marília, mas também dos processos de produção em geral, está relacionado a uma maior autonomia dos sujeitos frente as relações de poder estabelecidas nos mais diversos campos sociais, econômico, político, cultural. Nesse sentido, o compartilhamento de saberes, de técnicas, de processos, pode ser encarado como um modo de contribuir para esta independência. Assim, como parte fundamental da exposição, serão realizadas cinco oficinas de produção de papel artesanal, atividades que darão conta de todo o processo produtivo da fabricação doméstica de papel.
Gabriela Motta
Curadora da mostra