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janeiro 14, 2018
Sucessão de Muros por Marcelo Amorim
Sucessão de Muros
MARCELO AMORIM
Naquela cidade o vento era forte demais. A ventania trazia a areia e mudava dunas de lugar. Ali, muitos anos atrás, um padre e sua comunidade lutaram contra a areia mas foi em vão. A igreja foi soterrada. Os fiéis perderam a fé. Para conter os ventos todos decidiram que o sensato era criar muros de contenção cercando a cidade. Cada vez que o vento escapava era preciso criar mais um muro. Até que eles se cansaram e passaram a viver dentro dos muros. Passados cinqüenta anos a igreja reapareceu. Ela tinha outra cor e as inscrições nas paredes se tornaram completamente ilegíveis.
Um homem mudou-se para uma outra cidade em um outro país. Registrou-se em uma pensão e saiu para almoçar. No caminho foi roubado todo seu dinheiro e seu passaporte. Ao saber que o hóspede estava impossibilitado de arcar com a despesas do aluguel o dono da pensão ofereceu-lhe um emprego no estacionamento. O emprego era noturno. Era simples, bastava ficar em uma sala olhando para uma televisão ligada em uma câmera de vigilância que apontava para um portão. E com o único intuito de provar que se encontrava desperto na jornada de trabalho era preciso apertar um botão de ponto de meia em meia hora. Passados quatro anos o homem pediu demissão por problemas de saúde. Por alguma razão ele não conseguia dormir em momento algum. A cada meia hora ele tinha o reflexo de acordar.
Uma mulher foi até a mercearia comprar um pacote de macarrão instantâneo. Deixou sua bicicleta amarrada em uma corrente na porta. Na volta ela tinha sido roubada. A mulher reclamou ao segurança que ali vigiava. Ele respondeu que era impossível vigiar todas as coisas, que cada um cuidasse do era seu. Enfurecida a mulher deu encaminhamento à sua vingança. A princípio passava as noites a inserir cola nas fechaduras da loja impossibilitando assim sua abertura, tornando necessário que as fechaduras fossem trocadas todos os dias. Em seguida passou a colar todas as fechaduras da rua e depois todo o comércio do bairro. Ela foi identificada através das imagens das câmeras de segurança e foi presa.
O homem se despediu da mulher e foi comprar cigarros. No caminho notou que um casal visitava um imóvel em exposição. Era um apartamento grande com dois pavimentos. O casal dizia que era impossível alugar os dois pisos. O proprietário dizia que só alugaria o imóvel todo para um único inquilino. O valor era baixo e o homem em um impulso aceitou o acordo. No apartamento moravam fadas que mantinham um minúsculo escritório próximo ao rodapé da sala de estar. As fadas se alimentavam do seu tempo e o impediam de sair. Para sair da nova casa e voltar à antiga casa era preciso convencer outro homem a ficar em seu lugar e alimentar as fadas. Em dois dias se passaram vinte anos. Sua mulher cansou-se de esperá-lo e casou-se novamente.
Chegando à cidade a mulher foi recebida por um motorista no aeroporto com uma placa contendo seu nome. A caminho do hotel no centro velho ela comentava a beleza das construções que carregavam as marcas do tempo. Chamou sua atenção no entanto calçamento das ruas composto por pedras redondas, pequenas, polidas e perfeitamente arranjadas em fileiras. Fascinada a mulher perguntou ao motorista como era possível a existência de tal artesania. 'Através do sofrimento' respondeu o motorista sem olhar pra trás. As ruas eram muito antigas e foram os escravos que a calçaram. 'Cada pedra dessas é um sofrimento' disse o motorista.
O homem não conhecia aquela cultura, aquela arquitetura era muito diferente da sua cidade natal. Resolveu se perder. Caminhar a esmo é uma ótima maneira de conhecer um novo lugar. Muito repentinamente o sol se foi dando lugar a nuvens escuras e uma tempestade chegou sem aviso. Correu para se abrigar mas ele se encontrava em um estranho bairro sem casas ou prédios, apenas muros muito altos e nenhuma marquise, nenhuma beira. Avistou um telhado muito pequeno que cobria um pequeno recuo. Se espremeu ali tentando escapar da chuva. Ouviu uma voz dizendo: 'pois não'. Olhou para os lados procurando entender de onde vinha a voz que repetia: 'pois não'. Assustado correu pela chuva procurando outro abrigo. Recostou-se em outro vão. Por trás de um rasgo envidraçado no alto muro notou uma luz e o vulto de um homem armado. Ele entendeu que ali os cidadãos moravam dentro dos muros e que os visitantes eram invasores. E que ele não era bem vindo.