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dezembro 9, 2017
Daniel Feingold: A primazia do suporte por Frederico Morais
Daniel Feingold: A primazia do suporte
FREDERICO MORAIS
“A arte não é uma crise de nervos.”
Brancusi
A obra que Daniel Feingold vem realizando há cerca de três décadas, de modo extremamente coerente no que tange à sua impecável metodologia de trabalho e consistência intelectual, o afasta dos modismos estéticos e conseqüentemente do marketing promocional, que costuma devastar a produção de tantos artistas.
Vou me ater aqui no curto espaço dessa apresentação de sua mostra, a dois aspectos da plástica de Feingold: a questão artesanal e a do suporte material da obra de arte. Parece pouca coisa, mas não é.
Mário de Andrade, ao proferir a aula inaugural dos cursos de filosofia e de arte da Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, em 1938, sobre o tema “O artista e o artesão”, afirma, logo de saída: “Todo artista tem que ser ao mesmo tempo artesão”. E acrescenta: “Artista que não seja bom artesão não é que não possa ser artista (psicologicamente pode), mas não pode ser artista bom. E desde que vai se tornando verdadeiramente artista, vai concomitantemente se tornando artesão.”. Cinco anos depois (1943) retomando a tese principal de sua aula magna, o autor de “Macunaíma”, burila mais o conceito dizendo que “Arte não quer dizer bem feito, mas fazer melhor.”. E este fazer melhor cada vez mais consistente, vai deixando de ser apenas habilidade manual para se transformar em uma técnica depurada ou mesmo em requintada elaboração intelectual. Com efeito, Pollock dizia que “A técnica é o resultado de uma necessidade” e que “novas necessidades exigem novas técnicas”. Como o “dripping” na realização de suas pinturas, cobrindo “all over” a tela deitada no chão.
Filho de um ourives, Daniel Feingold, foi surfista na juventude, tornando-se em seguida um construtor de pranchas, inicialmente, cuidando apenas da forma, e pouco a pouco, da totalidade do processo de produção, que é sempre artesanal. Arquiteto diplomado integrou equipes em escritórios de arquitetos, mas nunca chegou a elaborar seus próprios projetos. Freqüentou algum tempo a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, estudou filosofia e morou por mais uma década em Nova York onde fez mestrado no “Pratt Institute”. Em sua demorada permanência nos EEUU, onde chegou a expor individual e coletivamente, pode ver e estudar demoradamente o melhor da arte norte-americana – a abstração anterior a explosão da Pop-Art.
De volta ao Rio de Janeiro, montou seu ateliê-residência no bairro de Laranjeiras. O ateliê propriamente dito parece mais um depósito de materiais com dezenas de latas de esmalte industrial, que ele lança sobre telas de “terbrim”, usando não os tradicionais pincéis, mas o próprio bico dos frascos ou canaletas para que o esmalte escorra verticalmente e de forma controlada.
Quando se trata de papéis, Feingold faz uso de grande variedade de materiais, superpondo faixas coloridas, ou como em fascinante série negra, ainda em curso, provocando com seus instrumentos de trabalho, que não raro também usa de forma pouco ortodoxa, ranhuras, incisões, manchas ou grafismos que se contrapõem a formas-signos vigorosas e intrigantes.
“A arte é um processo. Não é um esguicho.”
Abraham Moles
Na tradição ocidental, a pintura é por princípio um objeto portátil e vendável, que permanece negado por uma visão cultural que descarta sua materialidade, em beneficio somente da imagem. De acordo com essa tradição a superfície surge como uma espécie de encenação cujas regras são ditadas por uma elite cultural e socialmente privilegiada. Objeto de culto religioso na Idade Média e humanista no Renascimento, persistiu até meados do século passado como tema para especulações intelectuais e/ou comerciais.
Jean Clair no capítulo dedicado ao exame do suporte em seu livro “Art en France” (Editora Chêne, 1972), observa que “se na tradição ocidental, a pintura é, de inicio, uma tela preparada estendida sobre um chassi, em seguida recoberta por pigmentos, “ela é negada enquanto objeto, por um olhar cultural, que negligencia sua materialidade, considerando apenas a imagem fenomênica que ela propõe nos limites de uma representação em duas dimensões”. É a tal “janela aberta” referida por Levy-Strauss, que via no modelo reduzido, isto é, no quadro, “o tipo mesmo da obra de arte, cuja virtude intrínseca é compensar a renúncia às dimensões sensíveis pela aquisição de dimensões inteligíveis”.
Dois anos antes da publicação do livro de Jean Clair, realizara-se no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, a primeira exposição de um novo grupo de artistas, batizado “Support-Surface”. Curiosamente, mesmo sendo possível apontar na própria França alguns antecedentes para o novo grupo, a influência decisiva veio do exame produção de artistas dos Estados Unidos que praticavam a chamada “Arte do Real”, como, entre outros, Ad Reinhardt, Morris Louis, Elsworth Kelly, Kennnet Noland, Jasper Johns e Sol Lewitt.
Uma nova história da pintura começava a ser escrita, tendo como base a afirmação da materialidade do quadro e não mais o ilusionismo da imagem, evitando-se, assim, a dicotomia suporte-superfície. Em sua demorada permanência em Nova York, Feingold teve inúmeras oportunidades de ver e analisar a obra desses artistas, sendo indiscutível a influência que os quatro últimos exerceram sobre o nosso artista na formulação e execução de uma obra potente e inovadora.
Não é por acaso, também, que Feingold tenha descartado o emprego de matérias primas, ferramentas e técnicas tradicionais como óleo, vinil, acrílica, pincéis ou espátulas na realização de suas pinturas, optando por usar o esmalte sintético sobre um tecido mais encorpado e resistente, o “terbrim”, não sem antes criar na própria embalagem metálica do produto uma espécie de canaleta que lhe permite controlar a quantidade da matéria a ser liberada e, simultaneamente, impedir que ela se esgarce comprometendo a precisão de seu percurso - que é sempre o de uma queda - na definição das linhas que atravessam o suporte de uma extremo a outro.
Um visitante mais apressado ou menos atento às sutilezas de sua obra, talvez não se dê conta de que seus quadros não se esgotam nos limites da superfície plana que têm à sua frente. Não porque careçam de molduras, mas porque esse plano costuma ser dobrado nos seus quatro lados. E a rigor poderia prosseguir por traz – o que seria um desperdício, um lesa-prazer. Assim como se juntar a outro, como já aconteceu. Ou outros mais, iguais ou parecidos, mantendo-se a mesma estrutura linear, porém mudando-se cores. O ponto de encontro entre elas criando módulos, ou apenas uma pausa, uma fresta, um ponto de fuga, parte de um jogo de simetrias e assimetrias. Ou indefinidamente – cobrindo paredes de corredores, túneis, dando a volta ao mundo, quem sabe.
Nos trabalhos que integram a série “Espaço Empenado”, de 2003, estando sua face mais visível totalmente coberta por “grafismos”, além de dividida em três módulos de diferentes tamanhos, o menor deles alteando-se sobre os demais, é fácil perceber a definitiva não-distinção entre suporte e superfície. A janela que estava aberta, permitindo-nos evadir da obra, foi fechada. Só nos resta olhá-la e pensar. Pensar e olhá-la. Algo foi acrescentado ao mundo. Que sem dúvida alguma ficou melhor.
“Quanto vivi num mosteiro zen no Japão” – conta o pintor norte-americano Mark Tobey, em um depoimento de 1975 – “Foi-me dado para meditação um desenho “sumi”, no qual se via um amplo círculo traçado com um pincel grosso. O que era aquilo? Todos os dias eu ficava observando-o. Era a anulação do meu ego? Era um verso em que podia perder o meu eu? Talvez não percebesse o seu lado estético. Escapavam-me os belos traços do pincel, que ao olho de um especialista oriental revelariam muito sobre o caráter de quem o havia pintado. Contudo, depois de minha permanência naquele lugar notei que possuía novos olhos”.
Frederico Morais