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novembro 26, 2017
Uma volta a mais no parafuso por Sérgio B. Martins
Uma volta a mais no parafuso
SÉRGIO B. MARTINS
Pouco após graduar-se em artes, em meados dos anos 1960, Bruce Nauman chegou à seguinte conclusão: se era artista, e tinha um ateliê, então tudo o que ele fizesse nesse ateliê seria arte. Foi assim que Nauman deu início a uma minuciosa investigação processual sobre o fazer artístico, esquadrinhando o tempo transcorrido e os eventos ínfimos que ocorriam em seu ateliê, além de ensaiar inúmeras ações heterogêneas registradas em mídias diversas. Em Exposição de Galeria – Notas sobre a Prática, Ana Linnemann compartilha do interesse (e do humor) de Nauman, embora por uma via diferente: ao levar para a galeria obras que aludem a diversas possibilidades da prática artística, Linnemann reverte a ênfase do norte-americano no processo e recoloca sua indagação na chave do objeto. Em várias das obras aqui expostas, ações integrantes do fazer artístico – desenhar, aparafusar – são desempenhadas por engenhocas ou gadgets artísticos.
Ocorre, no entanto, que um gadget artístico é uma contradição em termos. Em sua proliferação de usos, os gadgets levam ao paroxismo a forma-mercadoria: se um mesmo produto serve para quebrar nozes, medir a pressão atmosférica, sintonizar em radiofrequência amadora e manter gelada a cerveja, não é porque seja mais prático ter todas essas utilidades ao alcance de uma só mão – quem de fato usa todas as funções de um gadget, afinal? –, mas porque este produto-coringa é potencialmente capaz de apelar para consumidores com diferentes necessidades. Feito uma metralhadora giratória de valores de uso, basta ao gadget acertar num mísero alvo para que seu valor de troca se realize no mercado.
A obra de arte, ao contrário, embora não deixe de ser ela também uma mercadoria, tem uma relação bastante diferente com o uso – ou, como é mais correto falar nesse caso, com o sentido. A rigor, o sentido de uma obra não pode ser um agregado heterogêneo de possibilidades; a obra admite diversos sentidos, é verdade, mas sua proliferação é cerceada pela dimensão normativa inerente à produção artística, isto é, pelo fato de que o conjunto de decisões tomadas durante o fazer da obra pretendem formar um todo coerente, e não um amontoado de clichês. Se tais decisões não chegam a impor à obra um sentido unívoco, pelo menos obrigam a sua comunidade de receptores – a crítica, sobretudo – a debater tal sentido de forma minimamente coerente e passível de refutação; é isso que distingue esses mesmos receptores do papel de meros consumidores. No tocante à obra de arte, enfim, o gosto é aquilo que necessariamente se discute.
Num texto dos anos 1920, Alfred Sohn-Rethel, pensador que orbitava a Escola de Frankfurt, espantou-se com o misto de disfuncionalidade e criatividade que regia a relação dos italianos do sul com as máquinas. Naquele contexto, observou Sohn-Rethel, as máquinas nunca serviam exatamente ao seu propósito original; aos ouvidos de um napolitano, aliás, soaria até descabido falar no primado de tal propósito. Segundo uma lógica próxima à da nossa familiar gambiarra, os napolitanos frequentemente emendavam, modificavam, remendavam ou combinavam máquinas, de modo que a utilidade de cada máquina era moldada segundo os caprichos ou a necessidade imediata de seu dono. “Para um napolitano”, escreve Sohn-Rethel, “é quando as coisas quebram que elas começam a funcionar”, pois é aí que se a abre a janela para que seu dono intervenha em sua estrutura, em seu sentido e, por fim, em seu uso. Ao consertar o motor de seu barco, um barqueiro poderia facilmente modificá-lo para que ele também passasse a servir como cafeteira – e só assim, completa o pensador, um napolitano sente que aquela máquina é de fato sua.
Uma máquina de desenhar círculos, como a montada por Ana Linnemann na Mesa do Ateliê, parodia o estatuto do gadget – e, por conseguinte, da mercadoria – para invertê-lo em seu oposto. Ao fazê-lo, ela nos remete ao “ideal do quebrado”, título do texto de Sohn-Rethel. Não porque a máquina tenha estado ela própria quebrada, mas porque sua relação com o sentido é análoga àquela do napolitano com a utilidade. À primeira vista, a geometria produzida pela profusão de articulações e planos sobrepostos por Linnemann assemelha-se à de certas estéticas construtivistas, mas a aproximação é errônea: é a idiossincrasia, e não a racionalidade projetiva, quem rege o acúmulo anguloso de prateleiras que trepa na Mesa do Ateliê. A racionalidade projetiva é, enfim, desviada.
Daí que estas obras sejam superficialmente semelhantes a gadgets – são os títulos, em grande medida, que nos levam na pista falsa –, mas diametralmente opostas a estes em sentido. Afinal, que uso tem uma máquina de chutar paredes que não talvez o de poupar o pé da própria artista naqueles momentos de frustração tão característicos de qualquer fazer informado pelas amarras do rigor, aqui representadas pela via do humor? Se o giro automático dos parafusos no Objeto Simétrico e Instável corrobora essa decidida inversão da utilidade, isso se dá pela exata calibragem de sua velocidade. Seu tempo não é nem atravancado e irregular, como no espasmo muscular de quem fura com a força braçal, nem instantâneo e eficaz, como num aperto do gatilho da furadeira; trata-se do tempo moroso da máquina inútil. Se este tempo é também hipnótico aos nossos olhos, é porque ele reflete e inverte – evidencia, portanto – o próprio fascínio que as mercadorias comumente exercem sobre nós. Ao devolver-nos reflexivamente este fascínio, Exposição de Galeria dá uma volta a mais no parafuso.