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novembro 1, 2017
Oscar Niemeyer – Territórios da criação por Marcus Lontra
Oscar Niemeyer – Territórios da criação
MARCUS DE LONTRA COSTA
Oscar Niemeyer – Territórios da Criação + Retratos, Pinakotheke Cultural, Rio de Janeiro, RJ - 10/11/2017 a 16/12/2017
O surgimento de uma classe média urbana, composta em sua maioria por profissionais liberais ligados às atividades do setor público na antiga capital imperial, fez surgir os primeiros indícios de modernização no país. A imponente presença de Machado de Assis, expressão maior da nossa literatura, encontra eco em alguns pintores que substituem a alegoria clássica da aristocracia acadêmica pela temática da crônica, tão cara à burguesia. Ao final do século XIX, a jovem república brasileira convive com uma estrutura rural tradicional dominada pelas grandes oligarquias e uma pequena, porém combatente, classe média urbana que procura abrir espaços para seus propósitos ideológicos e formais. Ao mesmo tempo, nas províncias mais abastadas, como Pernambuco e São Paulo, herdeiros da aristocracia rural retornam de seus estudos europeus trazendo anseios e comprometimentos com a realidade modernista que conquista espaços no cenário europeu desde os primeiros anos do século XX.
Esta ânsia de modernização manifesta-se na Corte através da abertura da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Tal concepção urbanística de origem francesa, herdada do barão de Haussmann, evidencia a tensão social brasileira. Se, por um lado, o planejamento urbano tem por objetivo facilitar a circulação pela cidade, ações desastrosas como a derrubada do Morro do Castelo acentuam desigualdades cujos problemas os cariocas enfrentam pesarosamente até os dias de hoje. O modernismo brasileiro estrutura-se através dessas situações de enfrentamento e conflito que acabam por criar uma identidade ciclotímica: o compromisso com o futuro, com a industrialização e a utopia de progresso justo e harmônico caminha abraçado à recuperação de elementos da nossa história colonial, muitas vezes desprezada pelo pensamento acadêmico oriundo da Missão Francesa de 1816.
Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares Filho nasce em 1907 no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, no seio de uma família de classe média alta, patriarcal, composta por altos funcionários da antiga Corte Imperial. Dessa época, ele traz lembranças que iriam marcar, no futuro, sua personalidade e seus comprometimentos políticos. As negras, ou as “criadas”, continuam a circular pela casa, refletindo de maneira ostensiva aspectos de uma sociedade escravocrata que ainda hoje permanece entre nós nos quartos de empregada e nas babás vestidas de branco passeando com os filhos da elite brasileira. Dez anos depois, a Revolução Bolchevista transforma a Rússia agrícola e feudal em um imenso terreno de pesquisas para a implantação de uma sociedade baseada nas propostas marxistas. Durante a década de 1920, o Brasil confronta-se com forças sociais urbanas que enfrentam as tradicionais oligarquias rurais. Nas artes, curiosamente, essas propostas de inovação e modernidade manifestam-se nas tintas e palavras dos filhos do passado, seja na fazenda de Tarsila, seja no engenho de Cícero Dias. Intelectuais de grande calibre, como Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Lúcio Costa, conduziram processos de inserção e valorização da forma e do conceito modernista enfrentando com coragem a imposição acadêmica.
Durante a década seguinte, o Brasil transforma-se e cria políticas de governo voltadas para a necessária industrialização do país. Nesse momento, o mundo começa a se deparar com o enfrentamento de duas ideologias conflitantes: o comunismo, através da ditadura do proletariado, transformava a União Soviética em uma potência, sensibilizando artistas e intelectuais; e o nazifascismo de Mussolini e Hitler impunha uma noção de progresso determinada pela eugenia da raça. No Brasil, esse conflito mundial, que culminaria com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939, manifesta-se nos embates entre comunistas e integralistas. O Estado Novo implantado por Vargas reúne forças conservadoras de conotação autoritária fascista e alguns elementos liberais que levam para o interior do poder federal tal disputa entre democracias liberais burguesas e estatização acentuada de caráter autoritário. O convite para Le Corbusier projetar a nova sede do então Ministério da Educação e Saúde reflete tal tensão política instaurada na instância maior do poder que, nesse caso, em questão, termina com a vitória do ministro liberal Gustavo Capanema. Com o apoio de uma sofisticada nata de intelectuais, a maioria oriunda de Minas Gerais, como o próprio ministro, inicia-se a construção da primeira grande obra modernista no país. Diversos jovens arquitetos residentes do Rio, sob o comando de Lúcio Costa, são convidados a participar e, a partir daí o nome de Oscar Niemeyer desponta no contexto artístico e cultural brasileiro.
A ausência de comunicação, nos primeiros anos da década 1940, causada pela guerra, permite alterações fundamentais no prédio, que acabam por determinar alguns aspectos formais e conceituais característicos de uma interferência real brasileira e que posteriormente viriam a influenciar e transformar o movimento modernista internacional. Coube, portanto, à primeira geração de arquitetos brasileiros e em especial a Oscar Niemeyer, o enfrentamento – e a superação – da dicotomia nacional versus internacional presente desde os primeiros tempos modernistas no Brasil. Ao incorporar soluções plásticas determinadas pela plasticidade do concreto armado, a ele incorporando uma sinuosidade repleta de dobras e curvas, de surpresas e encantamentos, Niemeyer dialoga com o barroco colonial brasileiro, mas também com o universo onírico e surpreendente do surrealismo e de várias vanguardas negativas que confrontam o formalismo positivista do modernismo internacional.
O conjunto da Pampulha é marco definidor na trajetória artística da modernidade.
Pela primeira vez na história, o Brasil assume o protagonismo estético de sua época com a construção de elementos formais híbridos que desprezam a ortodoxia formalista e recuperam determinados elementos poéticos e românticos afastados pelo racionalismo. Todo o investimento teórico que assinala as dificuldades e tensões da vanguarda modernista se concretiza na Pampulha. Isso provoca na pacata e provinciana Belo Horizonte de então um terremoto de inquietações que ultrapassam as históricas montanhas mineiras e impressionam teóricos e pesquisadores do mundo inteiro. A partir de então, o modernismo brasileiro elabora novas estratégias, sempre com a régua e o compasso de Niemeyer. Tal ação define os preceitos que marcam a arte brasileira da segunda metade do século XX. Ela transborda as fronteiras da arquitetura e define-se como elemento seminal do pensamento estético brasileiro ainda hoje predominante.
A partir da Pampulha, a obra de Niemeyer cria uma poderosa simbiose com o sentimento brasileiro. E a construção de Brasília a todos impressiona por sua ousadia e por sua criatividade, o que fez Oscar Niemeyer certa vez afirmar: “Vocês podem gostar ou não da arquitetura de Brasília, mas vocês nunca viram coisa igual”. Com a construção da nova capital o Brasil constrói ícones definidores da identidade nacional, e estas formas passam a ser incorporadas, intelectual e afetivamente, por todos os extratos da sociedade brasileira. Nesse instante, Niemeyer supera os limites de sua categoria profissional. Ele passa a ser um construtor de formas e imagens com as quais o povo brasileiro se vê e se identifica, e a presença de artistas plásticos em todas as suas obras esforça o espírito barroco de integração das artes, fazendo de cada projeto arquitetônico um vibrante laboratório de experiências visuais. As ações conservadoras, o pensamento reacionário, a hipocrisia e o apadrinhamento que caracterizam a sociedade patriarcal, racista e ignorante, tentaram, sem sucesso, reduzir o valor de Niemeyer, ora criticando seus projetos, ora punindo-o por suas convicções políticas. Forçado a se exilar na França, durante o negro período da ditadura militar, Niemeyer adquiriu prestígio e reconhecimento mundial, com obras realizadas em diversas cidades europeias, africanas e do Oriente Médio. A compreensão da beleza como função justifica a permanente presença de artistas plásticos em seus projetos, garantindo a sempre necessária integração entre as artes. A presença de grandes nomes de nossa história artística, como Portinari, Bruno Giorgi, Burle Marx, Tenreiro, Athos Bulcão, Ceschiatti, Franz Weissmann e Tomie Ohtake, entre outros, dá à cada obra arquitetônica a força e a imponência de uma verdadeira sinfonia de formas e cores.
Ao longo de sua vida, Niemeyer produziu intensamente e afirmou-se não apenas como arquiteto, como a primeira referência estética brasileira reconhecida em todo mundo, mas também como artista e intelectual respeitado, atuando em várias frentes do conhecimento humano. A literatura para ele sempre foi uma paixão, e seus diversos livros publicados revelam um profundo respeito e cuidado com a língua portuguesa. Seus escritos, sobre vários assuntos, são verdadeiras lições de brasilidade. As artes gráficas, também, sempre o fascinaram. Durante os anos 1950 criou a revista Módulo, publicação interrompida pelo Golpe Militar de 1964 e retomada corajosamente pelo arquiteto quando de seu retorno ao Brasil em 1975, enfrentando a repressão e a censura ainda existente no país. Admirado e respeitado por intelectuais do mundo inteiro, pintou duas telas, presentes na exposição a partir de um comentário de André Malraux que, em sua primeira visita a Brasília, por ele chamada “A Capital da Esperança” disse ao arquiteto: “As colunas do palácio do Alvorada são as colunas mais belas produzidas pela humanidade desde a Grécia antiga. Vejo-as e imagino que belas ruínas elas nos darão no futuro”. Em 1964, deprimido pelo Golpe Militar, Niemeyer, no exterior, pinta duas telas que, a partir da afirmativa de Malraux, refletem o estado de espírito de um país que sucumbe ao arbítrio e à perda de sua cidadania.
No fim dos anos 1990, Niemeyer desenvolve aspectos escultóricos já presentes em toda sua produção arquitetônica. Com a retomada democrática, ele desenha diversos monumentos, e as suas formas arquitetônicas acentuam esse investimento estético tão presente no Museu de Arte Contemporânea, de Niterói (RJ), e no Museu Oscar Niemeyer em Curitiba. Suas esculturas passam a ser executadas e estão presentes em várias cidades brasileiras, bem como suas linhas de mobiliário desenvolvidas desde os anos 1980 com a parceria de sua filha Anna Maria. Territórios da criação tem por objetivo apresentar uma síntese de trabalhos criados pelo arquiteto que superam os limites de sua atuação profissional. Assim, mostra toda a sua capacidade criativa e a importância de seu legado para a construção de uma identidade visual que venha a refletir um país mais justo, mais harmônico e no qual as conquistas sociais sejam igualmente repartidas por todos os segmentos da pirâmide social brasileira.
Ao falecer, em 2005, a figura de Niemeyer constitui um patrimônio de todo o Brasil e a série de retratos realizados por alguns dos mais renomados fotógrafos nacionais que integra a exposição, reafirma o valor e a importância desse grande nome da arte brasileira que este ano comemora 110 anos.
Marcus de Lontra Costa
Rio de Janeiro
Setembro de 2017