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outubro 9, 2017
Tudo é ficção por Heloisa Espada
Tudo é ficção
HELOISA ESPADA
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A obra de Lais Myrrha propõe conceitos claros para revelar formas inadequadas. Seu vocabulário é híbrido e poroso. Com cimento ou barro, colunas e torres, ações de construção e destruição, ouro e cocaína, mídia e política, a artista combina precisão e polissemia. Há uma urgência em elaborar o presente e, por isso, a análise histórica é fundamental. Mas se, teoricamente, a História e a Matemática deveriam operar nos domínios da razão, aqui elas expõem a arbitrariedade interessada de todas as linguagens.
Nesta exposição, Myrrha opera com medidas exatas para calcular o que é contingente, humano e potencialmente desleal. Propõe parâmetros de equivalência para configurar materiais incomparáveis ou incompatíveis. Os trabalhos contrastam porvir e ruína. Provocam o gosto amargo da autocrítica; a memória do que poderíamos ter sido; a consciência do fracasso que se percebe finalmente como delírio. Nas quatro peças de Cálculo das diferenças (2017), materiais brutos em estado de devir são confrontados com sua inutilização e morte. Essa condição sugere narrativas. Projeto e escombro se conformam em espaços idênticos, que podem ser tanto caixa quanto caixão.
Em Soma (não) nula (2017), ouro e cocaína têm o mesmo peso, um grama. A ideia de narrativa está novamente presente, pois a equivalência propõe algum tipo de acordo (pouco estável e pouco confiável) entre os materiais. As placas de ouro, precisas e sedutoras, não possuem memória. Lícito e ilícito se imiscuem. A artista está interessada na Teoria dos Jogos, um ramo da matemática que estuda o comportamento de indivíduos em estado de competição, com o objetivo de prever movimentos dos adversários e criar estratégias de ação. A teoria é aplicada a campos tão diversos quanto a economia, as ciências políticas, a biologia, as ciências militares e a cibernética. Nesse contexto, os chamados “problemas de soma não nula” são aqueles em que o ganho de um jogador nem sempre corresponde à perda do outro, o que não significa que o resultado será justo, pois ambos têm o objetivo maior de levar vantagem, nem que seja em prejuízo do adversário. Um exemplo clássico de “soma não nula” é o problema matemático conhecido como “dilema do prisioneiro”, onde dois jogadores são colocados numa situação em que o resultado mais vantajoso para ambos depende da mútua colaboração. Ainda assim, eles têm como opção confiar ou trair um ao outro.
Há cerca de quinze anos, Myrrha vem investigando o território incerto das memórias coletivas, onde patrimônio e monumento representam poderes, valores e aspirações. Ao construir anti-monumentos monumentais, a artista aponta para as fragilidades e as incoerências desses projetos. A fotografia está presente como documento parcial, uma espécie de olhar retrospectivo imperfeito e, por isso, adequado à investigação de estados pantanosos. Em trabalhos recentes como Corpo de prova (2016), Descontinuidade pelo tempo (2017) e Estrutura (2017), colunas projetam sua própria queda, consumada – ou na iminência de ser consumada – na inconsistência de procedimentos e materiais. Porém, ao formatar ruínas, as obras da exposição Cálculo das Diferenças se impõem como ações generosas e necessárias, exemplos da potência da arte em situações de desastre.
Everything is fiction
HELOISA ESPADA
Lais Myrrha's work presents clear concepts to reveal inadequate forms. Their vocabulary is hybrid and porous. With cement or clay, columns and towers, acts of construction and destruction, gold and cocaine, media and politics, the artist combines precision and ambiguity. There is an urgency in elaborating the present, and therefore historical analysis is fundamental. But if, theoretically, history and mathematics ought to operate in the realm of reason, here they expose the curious arbitrariness of all languages.
In this exposition, Myrrha works with accurate measurements to calculate what is contingent, human, and potentially disloyal. She offers equivalency parameters to shape incomparable or incompatible materials. The works contrast the future and decay. They provoke the bitter taste of self-criticism; the memory of what we might have been; the consciousness of failure that is finally perceived as delirium. In the four pieces of Cálculo das diferenças (Calculus of Differences) - 2017, raw materials in a state of becoming are confronted with their destruction and death. This condition suggests narratives. Project and debris settle in identical spaces, which can be either a box or a coffin.
In Soma (não) nula (Non-zero Sum) - 2017, gold and cocaine have the same weight, one gram. The idea of narrative is present once again, since equivalence suggests some kind of agreement (not very stable or reliable) between the materials. The gold plates, precise and seductive, have no memory. The lawful and unlawful interfere with each other. The artist is interested in game theory, a branch of mathematics that studies the behavior of individuals in competition, to predict the adversaries’ moves and create strategies for action. The theory is applied to fields as diverse as economics, political science, biology, military science, and cybernetics. In this context, the so-called "non-zero sum problems" are those in which a player's gain doesn’t always correspond to the loss of the other, which doesn’t mean that the result will be fair (since both have the greater objective of taking advantage), nor that it is to the adversary’s detriment. A classic example of a "non-zero sum" is the mathematical problem known as the "prisoner's dilemma," where two players are placed in a situation where the most advantageous outcome for both depends on mutual collaboration. Still, they have the option of either trusting or betraying each other.
For the past fifteen years or so, Myrrha has been investigating the uncertain territory of collective memories, where heritage and monument represent powers, values, and aspirations. By constructing monumental anti-monuments, the artist points to the weaknesses and inconsistencies of these projects. Photography is present as a partial document, a kind of imperfect retrospective, and therefore suitable for the investigation of murky conditions. In recent works such as Corpo de prova (Body of Proof) - 2016, Descontinuidade pelo tempo (Discontinuity through Time) – 2017, and Estrutura (Structure) - 2017, columns project their own collapse, consummated—or about to be consummated—in the inconsistency of procedures and materials. However, in shaping ruins, the works of the exhibition Calculus of Differences assert themselves as generous and necessary acts, examples of the power of art in situations of disaster.