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setembro 18, 2017
Desmanche por Bruna Fetter
Desmanche
BRUNA FETTER
Entramos em 2017 com uma aguda desesperança. Não apenas no Brasil, mas em diferentes localidades do mundo, ecos de instabilidade e frustração ressoam alto. Tensões econômicas, democráticas, sociais e humanitárias nos remetem a passados que gostaríamos de já haver superado. Em nosso país, desfeita a euforia gerada por um momentâneo impulso econômico seguido de uma crise política, observamos o desmanche gradual de conquistas e direitos que imaginávamos garantidos há décadas.
Frente ao esfacelamento de instituições e crenças, o artista se move. E é este movimento que Rommulo Vieira Conceição apresenta na exposição Tudo que é sólido desmancha no ar.
A fragilidade a que o título remete também nomeia a série de 17 fotografias inéditas de céus, realizadas pelo artista durante suas viagens. Tais fotografias, impressas em chapas de inox, não são o único elemento imagético dessas obras. Sobre elas, desenhos de diferentes projetos já realizados pelo artista estão desfacelados. Portas, pias, paredes, cadeiras, canos, grades, janelas e mesmo uma gangorra — todos descontruídos — vagam livres em um ambiente sem gravidade. Ao mesmo tempo que a sensação de colapso é evidente, a violência desses imagens é amortizada pelas nuvens ao fundo.
A questão da virtualização da imagem é cara a Rommulo, que há anos se utiliza da tecnologia e da linguagem projetual arquitetônica para desenhar. Seus projetos são de tal forma idênticos aos trabalhos executados que ficamos em dúvida de qual seria a obra de fato. Um trompe l’oiel [1] virtual, que parte da convicção de que o observador contemporâneo está preparado oticamente para compreender este código visual, projetivo. Ou seja, ler um 3D e enxergar, mesmo que mentalmente, sua respectiva materialização. No entanto, o que está em pauta agora é a desmaterialização. Ao despedaçar sólidas estruturas sobre diferentes imagens de céus, o artista potencializa a fragmentação de espaços e questiona a validade da perspectiva — interesses recorrentes em seus trabalhos — expondo a fragilidade de estruturas que supostamente deveriam sustentar as crenças a respeito do mundo que nos rodeia. Refletindo sobre um universo no qual a informação se concentra em algo tão etéreo quanto nuvens, o artista atrita as crenças e as certezas da atualidade, retomando questões elaboradas na modernidade e suas respectivas falências.
Na obra O espaço se torna lugar à medida que me familiarizo com ele (2017), primeiro vídeo produzido pelo artista, alocado e repetido em diferentes espaços da galeria, Rommulo também parte de vistas aéreas, do céu e das nuvens, mas aqui para caracterizar seus próprios deslocamentos. Fazendo uso do Google Earth Pro, aplicativo de uso simples e cotidiano, o artista novamente conta com o reconhecimento de tal código pelo público para articular paisagem, deslocamento, mapa, corpo, som. Assim, em diferentes localidades, o artista se posiciona no centro do quadro e, tal qual uma bússola, gira para os quatro pontos cardeais. Mapeando o lugar com seu próprio corpo, a cada nova fase do vídeo ele se encontra 12 passos mais afastado do observador, até desaparecer na grandiosidade de cada paisagem-vazio. Corpo que some, se consome pelas paisagens, se desmancha, enquanto o mapa aéreo no canto inferior direito da tela acompanha tal operação. No canto inferior esquerdo, o perfil da paisagem percorrida serve de inspiração para as composições originais que integram a trilha sonora do vídeo.
Esta obra, como a maioria dos trabalhos de Rommulo, fala do espaço. Não um espaço privado que se sobrepõe a outro, mas uma paisagem localizada e localizável por qualquer pessoa que se proponha a seguir as coordenadas geográficas anunciadas. A obra propõe participação, mas não a impõe. O visitante pode ou não se engajar, pode ou não acessar o QR Code e ser lançado para as nuvens de informação, pode ou não reivindicar aquelas paisagens para si. Essa operação de aproximação/afastamento joga com noções da familiarização daquele corpo e do nosso olhar com cada uma das paisagens do vídeo que, aliás, está em processo aberto e seguirá crescendo pelo acréscimo de novas localidades enquanto o artista seguir interessado na proposição. A incerteza em relação a um desfecho para a obra remete à série de fotos, em suspensão, na iminência de uma queda.
Partindo da famosa frase de Karl Marx no Manifesto Comunista, de 1848: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas” —, a mostra apresenta ruínas da contemporaneidade para questionar ciclos históricos. O paradoxo apresentado por Rommulo nesta exposição gera um desconforto que cresce aos poucos, à medida que percorremos o conjunto das obras. A constante autocitação de obras existentes cria uma sensação de déjà vu, ao mesmo tempo que sua dissolução revoga uma promessa de futuro. Restam-nos rastros de um devir que ainda se espera possível.
1 Engana olho.