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setembro 4, 2017
Museu à beira do oceano por Paula Alzugaray
Museu à beira do oceano
PAULA ALZUGARAY
Para Katuschak e Domingo, minha avó dançarina e meu pai artista de cinema
Em reportagem de capa do Diário Carioca, em 8 de agosto de 1936, um político conhecido como “senador dos cassinos” é cobrado por uma explicação, atitude ou gesto que esclarecesse os escândalos envolvendo a Prefeitura do Rio de Janeiro. “Vamos, Senador, Vida às Claras, ao Menos Uma Vez...”, exclama a chamada. Contrariando as expectativas, diz o texto, o homem permaneceu em silêncio, recolheu-se à sombra e à omissão, “quando seu dever de representante da Nação era destruir as acusações ou renunciar o mandato”.
O senador dos cassinos é mais um folião da corrupção infiltrada nos grandes bailes de máscaras da política nacional. A história dos laços entre um senador frequentador da Urca, os dirigentes de um estaleiro e o responsável por um órgão público da cidade, nos anos 1930, repete-se na esbórnia generalizada hoje entre políticos, empresários e funcionários públicos. Nada mudou. Silêncio e omissão são as leis da política brasileira.
Talvez por isso as ruínas do Cassino da Urca sejam tão ameaçadoras. Elas revelam um flagrante entrelaçamento entre passado e presente, entre luz e sombra. Os escombros do que um dia foi a estrela soberana na noite carioca, a casa noturna mais frequentada da América Latina, encobrem não apenas casos notórios, mas fatos incógnitos que nunca chegaram a ser desmascarados. Através das frestas nas paredes adivinham-se os risos e os rumores que selaram tramas, conspirações, sabotagens, crimes cinematográficos, como o noticiado assalto de joias, arquitetado pelo chefe da Seção de Roubos e Furtos da Diretoria Geral de Investigações (DGI) do Rio, com o envolvimento estratégico do porteiro do cassino [1].
Sobre as brancas areias da Urca, nesse palácio de vícios e prazeres, reunia-se a fina flor da boemia artística carioca. A inauguração do Cassino da Urca, em 1933, coincide com o nascimento da era de ouro da música popular brasileira – 1932 foi o Carnaval de Noel Rosa – e com os tempos sombrios de ditadura e de guerra. Tempos de vigilância e paranoia, quando os artistas da noite eram fichados pela Delegacia de Ordem Política e Social (Dops) do Estado Novo.
Então lugar de insubmissão, o cassino é hoje um museu do esquecimento. Longe de suas feições originais – descaracterizadas em décadas de ressignificações e abandono –, sem que se possa recorrer a fichários, álbuns ou arquivos que documentem e elucidem seus dias de gloria e ruína, o cassino ganha discernimento no projeto A Invenção da Praia. Na forma de espectros e reinvenções, os trabalhos realizados por 12 artistas convidados reelaboram sua arqueologia e sua memória.
A invenção da identidade
Em sua presença invisível e inquietante, os ratos, evocados a participar do trabalho de Laura Lima, se relacionam tanto com a corrupção tramada nos salões do cassino, quanto com as narrativas e os corpos de todos aqueles profissionais que foram mergulhados na clandestinidade em 1946, após repentina proibição dos jogos de azar e o fechamento do Cassino da Urca.
Em 1940, quando se contavam oficialmente 79 cassinos no Brasil, os conúbios ilícitos eram tais que o governo Vargas, tido como “sócio” das casas de tavolagem, teria estabelecido uma lei que dispunha que, se um dia o jogo fosse proibido, o Estado pagaria indenização aos proprietários e as dívidas trabalhistas com os funcionários demitidos [2]. Paradoxalmente, a sociedade vivia marcada por uma política de punição corporal de pensamento higienista, articulada por uma rede de investigação a pretexto de defesa da ameaça comunista.
Esse “regime de corpos”, segundo o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, considerava o artista da noite suspeito até prova em contrário. “Por ser um corpo fora do normal, por ter habilidades que não são comuns a um corpo que, naquele momento, no Brasil, era pensado como um corpo masculino, rígido, militarizado, corpo higienizado e moralizado” [3].
A guerra na Europa reforçava fronteiras dentro do território brasileiro. Nomadismo, para o Estado, era antagônico ao controle. Era preciso um documento de salvo-conduto para passar de um estado a outro. Artistas de cassinos, que transitavam por toda a costa sul-americana, do Recife a Buenos Aires, eram alvo número 1. Para circular livremente, fazia-se necessário falsificar, disfarçar, fantasiar.
Assim nasceram as personalidades exóticas, exuberantes e fantasiosas dos artistas da noite. Como a princesa bailarina Alda Bogoslowa, supostamente nascida na Rússia entre 1891 e 1892. Segundo notícia do Diário de Pernambuco (1929), ela teria pertencido ao elenco do Theatro Imperial Russo, passado por Áustria, Alemanha e Holanda com grande reconhecimento, e pelo cabaré Folies Bergère, em Paris, antes de chegar ao Recife para dançar no Imperial Cassino [4]. Ou como Magdalena de Mejia, conhecida na vida artística como Lidia Campos, nascida em Rosário, na Argentina. Cantora em cabarés, dancings e cassinos, na Argentina travestia-se de Mariak de Mendonça, a Soberana da Canção Brasileira; e, no Brasil, era anunciada como La Reina del Tango [5].
Rato (2017), de Laura Lima, evoca essas identidades perdidas. Assim como a videoinstalação Travessia (2017), de Sonia Guggisberg, que, ao abordar as migrações contemporâneas, trabalha com vidas em estado de suspensão. Com cenas e sons captados no Mar Mediterrâneo e em campos de refugiados em Malta, Lampeduza e Grécia, Travessia integra uma pesquisa a respeito do redesenho de identidades, empreendido por migrantes que deixam a terra natal e se lançam ao mar, sem certezas nem destino.
A morte na praia é a imagem que a todos devora. Os fragmentos de naufrágios – de barcos e vidas – trazem a angústia dos projetos que acabam na areia. Especialmente hoje, com a tragédia cotidiana dos refugiados sírios. E com a derrocada da cultura como pilar da sociedade.
Camarim das atrizes
Em 1925, o espanhol Juan Gris pinta La Guitarre Devant de La Mer, natureza-morta com violão diante de uma janela aberta para o mar. O elemento mais comentado da paisagem é o triângulo branco que viria a representar um veleiro. Mas não chama menos atenção a semelhança dos morros ao fundo com o Pão de Açúcar [6].
A paisagem cubista de Gris poderia ter sido pintada desde a escotilha de um barco ancorado em uma manhã no Rio, no momento em que “o furo do ambiente calmo da cabine cosmoramava pedaços de distância no litoral” [7].
Quando o Pão de Açúcar era um teorema geométrico, para Oswald de Andrade e para os modernistas brasileiros, a dançarina espanhola impunha desafio semelhante aos pintores cubistas franceses e espanhóis. Pentes, leques, cordas de guitarra e sinuosidade das ciganas andaluzas eram mais sugestivos e propensos à abstração geométrica do que os recursos das dançarinas francesas de cancã.
Nos anos 1930, uma dançarina espanhola de nome russo iluminou as noites do Cassino da Urca. Mas pouco restou sobre ela. Apagadas, as vedetes que jazem à sombra da centelha luminosa de Yolanda Penteado, Elvira Pagã, Eros Volúsia, Virginia Lane, Íris Bruzzi e Luz del Fuego (estas, sim, evocadas em biografias, documentários e exposições), impõem um desafio para quem delas tenta se aproximar. Se hoje elas são tênues rastros, em seu tempo foram impositivas.
“Buscando a individualidade, aquelas vedetes atuaram na desconstrução da vida puritana, questionaram a ordem patriarcal da sociedade e advogaram a emancipação da mulher. Sua audácia resultou numa biopolítica da corrosão do poder”, afirma Paulo Herkenhoff [8]. Assim como as artistas modernas (Tarsila, Anita, Maria), Mariak, Magdalena e Katuschak quebraram paradigmas e foram determinantes para a mudança do papel da mulher na sociedade brasileira.
É sobre essa presença afirmativa que se debruça Laercio Redondo. Em Como “Vaes” Você/ Espectro de Carmen Miranda (2017), elaborado para a Invenção da Praia, Redondo retorna à personagem que centralizou sua pesquisa em 2010 (Carmen Miranda – Uma Ópera da Imagem). Ao pinçar um trecho enigmático da marcha de Ary Barroso, imortalizada por Carmen, o artista macula a superfície caricata do mito. Ao destacar a frase – claro é o passado, escuro é o futuro – vai em busca da dimensão do corpo performático e político da cantora, seu senso de humor e uso deslumbrante de influências da cultura afro-brasileira. No Grill Room da Urca foi inventado o Brasil exótico.
Do fosso de orquestra onde se apresentaram as mais animadas big bands que o Rio de Janeiro conheceu emanam as vozes de 26 poetas mulheres. Elas integram o projeto de performance expandida Alto-mar (2017), de Katia Maciel, composto de leituras de poemas que contêm a palavra MAR. Ao tornar o antigo palco do cassino ponto de encontro de poetas ao longo de sete dias corridos, Alto-mar alcança as alturas dos timbres sonoros de outros carnavais. O projeto aproxima a poesia – aqui expandida em leituras coletivas e em ações públicas e políticas – ao campo da performance; e amplifica a voz feminina na poesia contemporânea.
Nas tertúlias de Alto-mar, há amplo diálogo com os saraus modernistas. Chega-se a avistar, ao longe, os eventos notáveis do ano em que o edifício foi inaugurado, 1922, como Hotel Balneário. Mesmo ano da publicação de Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, e da Semana de Arte Moderna. Ano da aprovação do plano geral do bairro da Urca, atendendo à nova demanda imobiliária de terrenos à beira-mar.
As instâncias do dia e da noite, do moderno e do contemporâneo, encontram-se na imagem da “a moça de salto que mergulha no mar”, no poema Casa Moderna, de Katia Maciel.
A invenção da praia
Em 1915, a Lapa ainda tinha PRAIA. Chamava-se Praia das Areias de Espanha. Hoje em seu lugar está a Praça Paris. Alguns séculos antes de a praia tornar-se o mais promissor projeto de espaço democrático da vida carioca, a Urca não passava de terreno pantanoso. Antigos mapas apontam que essas terras onde o Rio de Janeiro foi fundado em 1565, eram uma ilha. Um aterro no século 17 ligou a ilha ao continente. Outro aterro, em 1922, inventou a Praia da Urca.
Na Urca não cabem os arrastões, fenômeno analisado em videoinstalação de Lula Buarque de Hollanda. Os quatro canais de Arrastão (2017) discorrem sobre três tempos de existência dessa prática coletiva milenar, unindo duas margens do Atlântico. A narrativa inicia no Benin, onde os arrastões são consagrados à retirada da rede de pesca do mar, se arrastam para a zona sul carioca em domingo de sol, anos 1990, quando tomam a forma de atos libertários de ocupação do espaço público, e termina em 2017, como tática de guerrilha, estratégia organizada de roubo em tempos de crise econômica.
Arrastão é força da natureza social. Mesmo com toda barreira e esforço de civilizar a Praia de Ipanema e a Praia da Urca, as mitologias do Dilúvio preponderam.
A estas forças se impõem o Quebra-mar (2017), a segunda obra concebida por Katia Maciel especialmente para o projeto. É sugestivo como a imagem de uma onda que atinge repetidamente a parede marmórea do cassino na videoinstalação em três telas de Maciel reflete na forma como uns trabalhos da exposição respingam, ou rebatem em outros.
Como uma projeção do Quebra-mar, ela imagina: “Teve aquela vez em que o mar invadiu o salão e o espetáculo continuou”. O episódio vira matéria prima para as Memórias de Areia (2017), de Giselle Beiguelman, que coleciona histórias reais ou inventadas sobre o cassino, materializadas em objetos. Depois, transforma estas memórias em forminhas de areia para um happening coletivo na praia.
Memórias de Areia presume a ruína e a praia como páginas em branco. Como foi a areia de Iperoig (atual Ubatuba-SP) para o padre José de Anchieta, que entre os índios tamoios, escreveu um poema de 5.785 versos, varrido pelo mar e depois transposto da memória para o papel.
De presenças varridas pelo mar fala o tríptico fotográfico Sem Título (Ausência) (2011), de Maria Laet, que documenta as etapas de desaparição das marcas de um corpo na areia da praia. De perda das tradições do mar fala Maurício Adinolfi, que traz a este projeto sua atuação compartilhada com populações litorâneas em situação crítica e sua pesquisa sobre as relações do homem com o rio e o mar. Realizado com cordas marítimas e ossos de uma baleia jubarte, Leviathan 1.0 (2017) parte de uma investigação sobre a pesca de baleia no litoral fluminense, os barqueiros da região, seus resquícios e as relações com a cidade.
Tudo o que na ruína é sombra, é hipervisibilidade na praia. Lembremos que os enigmas não cabem na lógica da praia, onde tudo está explícito. “Estamos no império do visível; não há fundos falsos onde se esconder nem margem para segredos” [9], afirma o escritor Alan Pauls, integrante da primeira edição do projeto A Invenção da Praia (Paço das Artes, SP, 2014).
Do paradoxo entre hipervisibilidade e desaparecimento fala a série inédita Praia do Cassino (2017), de Caio Reisewitz. No Rio Grande do Sul, na maior e mais deserta praia do mundo, em seus 254 quilômetros de linha reta, ondas altas e ventos fortes, se prestam as condições ideais para as visões de imagens metais, as fabulações de habitantes noturnos de um cassino que não se sabe ao certo se chegou a inaugurar. Uma ruína a mais, na sequência de embarcações encalhadas na Praia do Cassino – 287 contabilizadas –, a imensa construção de pedra não alcançaria ser a grande atração turística do mais antigo bairro balneário do Brasil (1890). Naufragou antes de acontecer.
Retrato fiel da ruína brasileira, o cassino fantasma do RS evoca a lembrança de uma utopia modernista que nunca virou realidade. O Museu à Beira do Oceano (1951), de Lina Bo Bardi, encomendado pela Prefeitura de São Vicente-SP para ser edificado sobre as areias da praia, e nunca realizado. É para a memória desse edifício – e sua espetacular fachada de 90 metros de cristal voltada para o oceano Atlântico – convidamos a tocar a Ópera do Vento (2017) de Nino Cais, uma orquestra de 80 conchas marítimas, em papel. Ou o baixo escultórico da série Desenho Sonoro (2015), de Chiara Banfi, a ser dedilhado por longas unhas vermelhas espectrais – ou, ainda, pelas mãos do público. E Carmen Miranda, anunciada em cartazes distribuídos pela cidade, em sessões diariamente programadas, AO VIVO (2017), intervenção sonora de Bruno Faria.
É para a ruína do futuro que dedicamos os ratos, os navios fantasmas, as moças de salto e os arrastões. Para, quem sabe, encontrar entre os espectros, como diria Vila-Matas, uma verdade não demonstrável.
Paula Alzugaray
Setembro de 2017
P.S.: Um 14º trabalho, em eterna construção, é o texto A Mulher Que Perdeu a Sombra – uma biografia emocional da dançarina espanhola do cassino.
notas
1 Policiaes accusados de receber dinheiro de ladrões! Rio de Janeiro: Diário de Notícias, 9 de janeiro de 1935
2 Castro, Ruy. A Noite do Meu Bem. São Paulo: Companhia das Letras. P. 22
3 Hoffmann, Clarice e Muniz de Albuquerque Júnior, Durval. O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos 1935-1958. http://obscurofichario.com.br/
4 Com a pesquisa da jornalista pernambucana Clarice Hoffmann, foram digitalizados e disponibilizados no Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos 429 fichas e prontuários pertencentes ao SSP-Dops/PE, de mulheres e homens, brasileiros e estrangeiros, que protagonizaram uma movimentação ocorrida na cidade do Recife no campo das artes e das diversões (entre dançarinas, sapateadores, cantores, transformistas, pugilistas, telepatas, cartomantes e ilusionistas), entre as décadas de 1930 e 1950. Esse fichário não apenas constitui um precioso memorial de personagens, como também uma saborosa cartografia de teatros, cassinos, bares, rádios e cinemas operante no Recife de meados do século 20.
http://obscurofichario.com.br/fichario/alda-bogoslowa/
5 http://obscurofichario.com.br/fichario/magdalena-giamarelli-de-mejia-3/
6 The Spanish Night – Flamenco, Avant-Garde and Popular Culture 1865-1936, Madri, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, 2008, pg 235.
7 Andrade, Oswald. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. P. 85
8 Herkenhoff, Paulo. Tarsila e Mulheres Modernas no Rio. Rio de Janeiro: Museu de Arte do Rio, 2015
9 Pauls, Alan. A Vida Descalço. São Paulo. Cosac Naify, 2013. P. 27
(Revisado por Hassan Ayoub em 29/8/2017)