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agosto 24, 2017
Moldando ciclos em látex por Heldilene Reale
Moldando ciclos em látex
HELDILENE REALE
A borracha natural da seringueira molda-se por um gesto humano que conduz sua matéria orgânica a temperaturas que a esticam, deformam e conduzem ao retorno de sua forma original. O processo de criação artística presente nesta coletiva se configura como um látex. Parte de um ato de deformar o concreto, abstraindo e o moldando novamente; tece, reconfigura, dissipa informações de um passado no contexto presente em temperaturas variadas, invadindo a possibilidade de sermos sujeitos contemporâneos em um processo histórico deformado e retornado.
Cada artista forma um vinco em sua própria seringueira poética, talham seus troncos recolhendo a seiva que ora sangra a memória de um tempo que repercute aspectos políticos, econômicos e sociais, desconfigurados; ora mostram a cor branca da seiva, na tentativa de revisitar a história pelos próprios partícipes da mesma, limpando territórios de narrativas construídas em fragmentos; ora a seiva já se apresenta vulcanizada, emborrachada, moldando objetos que se repercutem em apropriações de elementos provindos de um uso cotidiano.
Os gestos da criação destes artistas formam-se por sulcos que emanam um líquido que perpassa por experiências de contato com a borracha para além de seus ciclos. Um ciclo plural formado pelos artistas plásticos paraenses Emanuel Franco, Geraldo Teixeira, Jorge Eiró, Marinaldo Santos, Nio Dias e Ruma de Albuquerque. Eles apresentam neste espaço, obras bi e tridimensionais com apropriações de componentes derivados da matéria-prima látex e demais fatos da história desses ciclos.
Câmeras de pneus e refugos sinalizam a seiva de Emanuel Franco, desenhos florais presentes nas edificações construídas no período áureo, de comercialização da borracha na Amazônia, se repercutem nos sulcos pictóricos de Geraldo Teixeira. Inspirado no texto do sociólogo Fábio Castro, “A Cidade Sebastiana”, Jorge Eiró apresenta as ruínas desta cidade formada pela memória de um líquido que despeja cotidianamente o reflexo de um período de opulência econômica, que margeou em um segundo momento a crise e decadência, a derrota e fracasso de uma não tão Belle Époque, uma cidade que toma um fôlego cotidiano para se desviar das marcas de sua dor e silêncio.
Marinaldo Santos garimpa apropriações de derivados do látex, com elementos do cotidiano, representados por simbologias históricas da economia da borracha na Amazônia. Nio Dias sangra em sua poética a crítica de uma sociedade esplendorosa, construída a partir de um regime escravocrata dos seringueiros, postos a riscos de trabalhos em áreas de perigos da floresta, sujeitos a dívidas eternas por seus coronéis. Ruma de Albuquerque traz à tona em suas volutas, representações visuais do pano de boca do Teatro da Paz, monumento emblemático deste percurso, de uma cidade construída a partir de padrões europeizados, em uma época em que as ondas dos cursos d’água dos rios amazônicos, refletiram um rio mais barrento e mais turvo que a cor do látex da seringueira.
Nestes sulcos criados no ambiente expositivo, estes artistas extraem poéticas que moldam reflexões sobre a narrativa histórica da borracha na Amazônia. Jorram látex que se configuram em cortes incisivos, suaves e ocultos.
Heldilene Reale
Curadora da Exposição
Látex, Espaço Cultural Banco da Amazônia, Belém, PA - 27/06/2017 a 25/08/2017