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agosto 14, 2017
Queermuseu: o museu do desvio por Gaudêncio Fidelis
Queermuseu: o museu do desvio
GAUDÊNCIO FIDELIS
Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira é uma exposição que explora a diversidade de expressão de gênero e a diferença na arte e na cultura contemporânea através de um conjunto de obras que percorrem um arco histórico de meados do século 20 até a contemporaneidade. A cronologia foi abolida em favor de uma série de mecanismos curatoriais de justaposição que possibilitam o confronto entre obras de períodos, estilos e inclinações estéticas diversas. Assim, essas 264 obras de 85 artistas das mais diversas modalidades artísticas, provenientes de coleções públicas e privadas, e representativas igualmente da diversidade estética e geracional da produção de diversas partes do país, encontram-se em um campo de investigação cartográfica sem hierarquia de estilo ou inclinação artística. O que as une em confronto são dispositivos artísticos que as caracterizam e que, quando postas lado a lado, geram uma relação produtiva que transforma a “montagem” em um surpreendente universo de novas relações conceituais, simbólicas e históricas.
O centro gravitacional de Queermuseu é a relação genero/diferença, por meio de um dilacerante corte epistemológico no centro operacional da colonização das subjetividades que institui os marcos do pensamento sobre gênero, etnia e sexualidades. Afinal, uma exposição sobre a diferença não poderia operar fora desses registros − e promover plataformas que busquem superar essa mentalidade colonizada, um tarefa de urgência de instituições que se querem à frente dos programas de avançados. Não por outra razão, Queermuseu, que é um “museu provisório”, ficcional e metafórico, onde a inclusão é exercida para além dos parâmetros restritivos do cânone artístico, geralmente excludente e discriminatório, enquadra-se perfeitamente em uma instituição não museológica como o Santander Cultural, mas que opera na frêquencia de produção de conhecimento e ativismo cultural e artístico em sintonia com o que há de mais democrático e avançado na vida contemporânea.
Queermuseu não é, porém, uma exposição romântica ou formalista. Ao contrário, constitui uma investigação cartográfica não tradicional dentro de uma perspectiva não simétrica, com o objetivo de atravessar uma extensa variedade de problemas artísticos que dizem respeito às questões de gênero e sua diversidade sob uma perspectiva queer não normativa. O conceito de uma exposição queer representa uma porta de entrada para se discutir questões relativas à formação do cânone artístico e à constituição da diferença na vida contemporânea. Sabe-se que termo queer data do século 19 e surgiu com conotações depreciativas, tendo sido reapropriado pela comunidade LGBT em meados dos anos de 1990 a partir de uma visão afirmativa e avançada. O termo possibilita a inclusão de comportamentos e referências queer/heterossexuais e queer/homossexuais, assim como outras categorias localizadas entre eles. Subsequentemente, com sua entrada na academia, os estudos queer trouxeram uma abertura capaz de investigar as instâncias políticas que distinguem a normatividade institucional (no campo da arte leia-se canônica) daqueles desvios que podem ser considerados fora da norma e, portanto, ignorados ou excluídos. Não se trata, no entanto, de pensar o desvio como negativo ou pejorativo, e sim como um caminho de enquadramento alternativo. Trata-se de uma contraestratégia operacional subversiva de engajamento epistêmico. O desvio também comporta a inclusão de outros sentidos além do olhar na constituição da arte (olfato, tato, paladar, audição), o informe de Georges Bataille, as formas de subversão e transgressão. Ele é instrumental para uma plataforma curatorial como esta, pois permite a derrubada de barreiras de gênero sem necessariamente impor outras. A própria noção de identidade, consolidada pelo conjunto de exposições que trataram de questões identitárias a partir de meados da década de 1980, transformou-se em uma barreira normativa que se tornou por demais conservadora e representativa de uma política das diferenças, passando a ser instrumentalizada por vezes pela própria área de curadoria, a exposição possibilita a inserção de outros parâmetros de julgamento relativos à formação de um pensamento crítico fora da norma regulatória das exposições tradicionais.
Assim, Queermuseu busca constituir um espaço de reflexão e de produção de conhecimento que seja capaz de dar conta de um conjunto de obras que se mostre relevante para repensar as formas canônicas, refletir politicamente sobre a constituição da lógica do aparato museológico e investigar o espaço institucional como um espaço provisionalmente queer. Ao mesmo tempo, essa plataforma curatorial possibilitará rever determinados princípios da história da arte, deslocando temporariamente os mecanismos institucionalizantes, permitindo revelar um conjunto de princípios que os regem. Além disso, Queermuseu assume o desafio de, ao organizar uma exposição queer, imprimir uma virada epistemológica acerca da arte e da memória, com o objetivo último de instituir uma perspectiva descolonializada da cultura e das subjetividades, incluindo também o que podemos definir como a “colonização da forma artística”. É justamente essa colonização que expressa claros sintomas de conservadorismo, exclusão e discriminação, incluindo manifestações de homofobia. Considerando-se que o colonialismo do poder atua tanto sob o ponto de vista objetivo, organizando os padrões culturais, políticos e sociais a partir de um centro, quanto a partir de um mecanismo subjetivo de reprodução de padrões e condutas, levando, desse modo, a uma colonização do corpo, a exposição organiza um conjunto de obras que sejam capazes de problematizar e esclarecer tais pressupostos. Superar essa colonização das subjetividades que institui o âmbito do pensamento enquadrado sobre gênero, é parte de uma tarefa institucional de urgência que se impõe às instituições deste lado do mundo. Trata-se inclusive de descolonizar as próprias subjetividades do pensamento colonial que são em grande parte responsáveis pela construção cultural da normatividade e que, uma vez migrando da institucionalizade para a vida social, promove toda sorte de induções discriminatórias e excludentes.
Exposições possibilitam que experienciemos os diversos paralelos entre a arte, seu potencial criativo e o universo da cultura. Dessa forma, as obras de arte mostram-nos que a diversidade, expressa na constituição da diferença como alteridade, sofre com o impacto da estruturação do cânone artístico da maneira como ele é estabelecido pela institucionalidade. Por tais razões, a escolha das obras para essa plataforma curatorial foi realizada levando-se em conta os aspectos artísticos, culturais e históricos do objeto artístico, considerando-se sua realidade material e conceitual, com o objetivo de assinalar sua contribuição para o espectador contemporâneo, ou seja, o que de fato ela os apresenta como mecanismos de sintonia com o que estamos vivendo no século 21, sejamos especialista ou não.
Queermuseu é, sobretudo, uma exposição que pretende dar projeção à arte e à cultura, através da diversidade, da forma e da representatividade dos artistas e de suas obras, das inúmeras questões artísticas que ultrapassam os mais diversos aspectos da vida contemporânea. Baseia-se, para tanto, na constituição formal dos objetos, nos hábitos e nos costumes, na moda, na diversidade comportamental e geracional, na evolução da estética, na percepção da cor, nos desdobramentos do corpo ao longo da história e em inúmeras outras manifestações que, em última análise, são determinantes na construção do gênero e da diferença no mundo contemporâneo.
Gaudêncio Fidelis é curador, Mestre em Arte pela New York University (NYU) e Doutor em História da Arte pela Universidade do Estado de Nova Iorque (SUNY)