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julho 13, 2017
Carlos Zilio por Guilherme Bueno
Carlos Zilio
GUILHERME BUENO
A situação da pintura na arte contemporânea, que nos últimos anos teria retornado a uma certa condição de "normalidade", aponta, de fato, para alguns aspectos singulares acerca de suas possibilidades e de seu significado hoje. Esclareçamos: a arte contemporânea, em suas proposições iniciais, investiu pesadamente contra o que se tinha como a hegemonia da pintura como modelo principal do modernismo. Isso vai muito além de uma crítica ao cenário norte-americano, mais discutido, e se manifestava na recusa tácita e geral de tomar a pintura quase como uma metonímia da arte moderna em geral. Mas as questões que a envolvem não param por aí: o imperativo que ela parecia viver de construir-se movida pela reflexão de seus termos - além de problemas materiais, do sentido histórico que ela carrega consigo (os vários quadros existentes dentro de uma mesma tela, os seus "fantasmas"), colocava-a em uma situação peculiar, pois, mesmo consideradas as várias manobras de ruptura que ela poderia exercer, ainda parecia obrigada a carregar o peso de sua tradição, o que não deixava de aderi-la ao território moderno da autorreflexão. Mas, ao mesmo tempo, essa presença material de sua história não podia ser algo simplesmente reprimido ou falsamente abandonado. Ele persiste em sua concretude naquilo em que cada obra vê-se compungida a testar sua validade entre seus pares.
Tais colocações nos guiam para uma reflexão sobre as atuais obras de Carlos Zilio em exposição na galeria Anita Schwartz. A trajetória do artista em sua aventura com o meio hoje é bastante conhecida: vindo de uma geração que declarou o fim da pintura, uma sequência de exposições a partir do final dos anos 1970, dentre as quais uma célebre retrospectiva de Cézanne, colocou-o em uma encruzilhada. A sua dúvida cézanneana somou-se sua investigação sobre os dilemas da condição do artista, da arte e de seu sentido e repertórios, em especial em um sistema frágil como o brasileiro. Observada à distância, aquelas suas primeiras telas eram mais do que a recusa a uma arte brasileira que "figurasse" o Brasil, mas antes enfrentasse o amplo território do legado de formas e estratégias da pintura moderna: daí surgirem evocações cruzadas a Matisse, Manet e Tarsila, Barnett Newman, Cézanne, Picasso, Jasper Johns, Robert Ryman... em resumo, de todo um tipo de investimento sobre a pintura – técnico, conceitual, plástico, espacial, objetual – que reativasse uma densidade distinta das abordagens então correntes a privilegiarem o gesto, uma espontaneidade crua ou um repertório de imagens pós-pop. Tal abordagem prosseguiu na década seguinte, quando durante anos a fio Zilio se dedicou a um sistema restrito de elementos (uma ortogonal em forma de “I” e uma paleta composta de preto, branco e terra de Siena – a um só tempo uma síntese austera da estrutura espacial renascentista e a delimitação de uma pesquisa cromática que contivesse o sensualismo "latente" da cor), na qual a consciência de que cada decisão, mesmo sem abdicar da intuição entre uma transparência ou um plano mais fechado e opaco, naquilo em que ativavam consigo todo um manancial de uma história passada, mas visualmente ainda viva, potencialmente abririam margem para mudanças de rota durante a consecução da tela. Tal sistema gradualmente ampliou seu escopo, com o gesto circular que dava a extensão entre o braço (pintar não com o punho) e a escala e o ressurgimento inadvertido de vestígios de imagens do seu passado artístico pessoal. É significativo apontar isso para notarmos que o rigor aqui jamais significou ortodoxia, na medida em que Zilio não obstruiu a aparição desses elementos não estranhos, mas inesperados dentro de uma abordagem da pintura que não os previa. Ainda assim, se eles irromperam, era imprescindível para a veracidade de sua pesquisa que eles tanto fossem posto à prova como também o pusessem – ao artista em pessoa – seu sistema à prova.
A produção de Zilio vê-se, portanto, em seu estágio atual, envolta nesse desafio. Há duas maneiras inter-relacionadas de tentar interpretá-lo: uma se concentra sobre a questão da imagem. A relação de Zilio com ela é ampla, pois agora elas não se limitam à convocação da História da Arte (universal e com maiúsculas), mas a sua história da arte, enovelada com outros episódios pessoais. Dito de outra maneira, a figura do Tamanduá – originalmente surgida em uma tela da década de 1980 – simboliza tanto uma experiência biográfica marcante (a perda do animal de estimação de seu pai cristaliza-se nele posteriormente como uma imagem de luto), mas também traz consigo sua assimilação de Matisse (a linha que é cor e desenho, sem contorno), por exemplo, e como seus trabalhos anteriores responderam não só ao pintor francês, mas aos vários outros que lhe foram caros. Essa história pode ser enfeixada o bastante para nela se entrecruzarem questões plásticas e metafísicas. Que se pense, no grande tríptico da presente mostra com seu jogo mais do que pictórico, de pintura.
Se a figura do tamanduá ao centro reitera a recorrência de seu significado para Zilio, ela distende-se no quadro com outras reincidências: no alto, à esquerda, a mão "Lascaux" traça com o tamanduá não só o espaço "parietal" de formas que nos falam de um anti-ilusionismo no quadro, mas no seu tom de inquietação com essa origem da arte, falam, em último caso (e o interesse de Zilio pela Lascaux de Bataille revela aqui uma de suas dimensões), desse surgimento da arte que é também a consciência da finitude, conforme o escritor francês especula em sua monografia. E, ao lado oposto, no outro extremo do tríptico retornam os diagramas de Cerco-Vida, Cerco-Morte de meados da década de 1970. Tudo isso poderia nos encaminhar para um pendor melancólico, porém as telas resistem contra a concessão ao sentimentalismo e nisso revelam o seu (não há outra palavra) contido esplendor. A luminosidade quase bizantina dos planos dourado e prateado, contraposta à compacidade do terceiro painel em um branco semimarmorizado, devolvem à pintura uma corporeidade, uma objetualidade que evita a dissipação psicologizante e diáfana que tais elementos poderiam tentadoramente suscitar. Se for permitida uma comparação mais contumaz, o tamaduá é seu Marat: permanece ali, impassível e real. No entanto, insisto, toda pintura implica um problema anterior (ou simultâneo), que é, ao fim, inalienável: trata-se de sua corporeidade e suas consequências na estrutura espacial da tela. Um indício que perpassa todos os trabalhos é o uso de diferentes materiais - óleo, esmalte, bases vinílicas. Zilio é um pintor, mas seu desejo de experimentar variadas luminosidade e corporeidade dos planos é diretamente proporcional ao uso de tais recursos como antítese à facilidade cômoda do métier. O teste com materiais é constante e sistemático, mas não é normativo. Na prática, ele passa pelo confronto entre esses materiais e os modelos espaciais de seu interesse pelos mestres da história da arte. Em outras palavras, como operar a partir de iridiscências igualmente potentes mas profundamente distintas como a de Newman, Rothko ou do Ellsworth Kelly dos anos franceses? Qual a diferença do plano raso das silhuetas matisseanas e da relação figura-fundo mínima dos moncromos de Malevich, Rodchenko, Ad Reinhardt e Rauschenberg? Não entendamos isso como uma arte feita a toque de citações, mas no desafio concreto de enfrentar o plano pictórico ciente de se encontrar uma solução pessoal em meio a esses continentes. O motivo do tamanduá aqui vem-nos defrontar de novo com as dificuldades auto-impostas. Que se tomem simultaneamente a versão branca e a preta. Nas duas a dissolução de sua silhueta novamente toca a desaparição; contudo é não menos a empreitada de instalar na tela uma imagem que não segmente a pintura em figura e fundo. Trata-se, em suma, de uma profundidade obviamente não ilusória que, no entanto, também não subscreve a noção consagrada de literalidade, parecendo antes assentar-se na fresta entre ambas. E, ainda assim, ela não é ambígua, como se transitássemos numa alternância de posição entre figura e fundo ou nessa outra entre ilusionismo e literalidade. As faixas que Zilio dispõe nas margens laterais de algumas telas não só demarcam o campo do olhar, mas, por extensão, quebram qualquer sensação de planos que se prolongariam indefinidamente para além dos limites do quadro. Constantes desde 2009 na série dos Tamanduás, elas demarcam o fim - literal - da pintura dentro do quadro. Ou seja, elas retiram o olhar do espectador de um estado de naturalidade, inscrevendo-o não menos nessa constatação de que o olhar também conjura sua história.
A exposição é completada por duas séries: uma de objetos, feitos a partir de vestígios do ateliê, também partícipes das mesmas inquietações das pinturas. Há desde a chaleira Goeldiberê, com a qual ele convive há décadas em seu ateliê, a outras peças nas quais também ressurgem elementos de suas obras de décadas anteriores (Vestígios acaba sendo um jogo auto-irônico com seus Vestígios da Paisagem, dos anos 1970) e a escada não deixa de trazer consigo novamente o motivo da queda do tamanduá. A outra série, de desenhos-colagens, guarda afinidade com os objetos, não só pela pronunciada presença dos recortes sobrepostos, que se acumulam como camadas geológicas, assim como novamente retornam em uma só vaga os papiers collés e os mesmos índices de obras concluídas (os recortes e estênceis) que seguem a habitar e assombrar o ateliê.
Dito com muita (talvez excessiva) liberalidade, a mostra em seu fundo pronuncia um quê de um autorretrato. Autorretrato das obras, naquilo em que todas elas nascem dessa complexa autorreflexão – não no estrito sentido do modernismo, mas sim naquele de longa ponderação sobre suas camadas - e que, ao discutirem sua própria história como um dos temas que lhes dá corpo, retornam nosso olhar àquela mão vizinha ao esplendor dourado e veneziano do tríptico, a nos fustigar acerca da imagem e da interiorização de uma história – de sua história, repito - como o primeiro gesto após o trabalho de luto.