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julho 6, 2017
À noite, o mundo se divide em dois por Thais Rivitti
À noite, o mundo se divide em dois
THAIS RIVITTI
À noite, o mundo se divide em dois, Ateliê 397, São Paulo, SP - 10/07/2017 a 07/08/2017
Nem à noite todos os gatos são pardos. Pelo menos não no Brasil onde são tantas e tão fortes as divisões sociais e as desigualdades de tratamento, visibilidade e direitos. Num cotidiano tão segregado, há distinções claras: vozes que comandam e vozes que seguem ignoradas. Gênero, etnia, renda, escolaridade entre inúmeras outras categorias, são determinantes das possibilidades de atuação social e a presença política dos cidadãos. A presente exposição dos artistas Raphael Escobar e Jaime Lauriano no Ateliê397 escancara essa desigualdade operante na realidade social brasileira, naturalizada em gestos, na linguagem e em atos da política institucional.
Jaime Lauriano vem construindo um trabalho artístico que se volta, a todo momento, para o campo da História. Seu processo de elaboração, embora sempre animado por uma indignação do presente – daí a pertinência em chamar seu trabalho de engajado –, ocorre por meio de pesquisas a acervos e coleções, escavações rumo ao passado (mais longínquo ou bem próximo) e coleta de dados significativos. Ele busca registros, fotografias, discursos, estudos, documentos ou notícias esquecidos ou pouco elaborados socialmente. São esses achados que nos permitem ver como a naturalização da injustiça e da violência são uma constante na História de nosso país. Suas obras apresentam um cenário ao mesmo tempo conhecido – Quem não sabe que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão? Quem não se lembra do massacre de Pinheirinho? – mas assustador, revoltante, inaceitável.
Já Raphael Escobar tem um modo de trabalho particular: suas obras são frequentemente desdobramentos de pesquisas imersivas, longas, em determinados contextos, normalmente ligados à vida urbana, marcadamente em São Paulo. O que o artista parece buscar são esses lugares que permanecem envoltos numa invisibilidade política e social. É o caso da fundação CASA – Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente, onde o artista trabalhou quando ainda era estudante e também, mais recentemente, o caso da cracolândia, onde trabalhou numa organização do terceiro setor, em contato direto com os moradores seu modo de vida. Foi dessa última imersão do artista, de seu contato e das relações travadas na cracolândia – compreendida, é necessário ressaltar, não um espaço físico, mas como um formação social, uma coletividade, com suas relações internas, seus modos de sociabilidade específicos e os sonhos e demandas de cada indivíduo – que nascem os presentes trabalhos. Misturados à vivência, à experiência nua, os trabalhos guardam com os acontecimentos uma proximidade da ordem do documental. Condensam relatos, cenas, imagens vividas. E, em por serem assim tão rentes à realidade, nos surpreendem, pois desconstroem clichês e estereótipos. Não mostram pessoas impotentes, embora haja ali muita dor, uma dor humana com a qual podemos facilmente nos identificar. Os integrantes do Bloco da pedra – bloco de carnaval organizado pelo pessoal da Craco – sabem se divertir, compõem sambas, tomam a palavra para contar a sua história. Ocupando o disputado espaço urbano do centro da cidade, são presenças incômodas para os agentes da gentrificação. Mas, em suas idas e vindas, seguem driblando os especuladores de plantão, criando uma resistência política muito própria: sem partido, sem movimento que os represente, sem pauta unificada e sem lideranças.
É fácil perceber como Jaime e Escobar, embora tenham processos de trabalho distintos, têm uma grande afinidade no endereçamento de suas produções. Dentro da arte contemporânea, esse campo tão afeito a heróis e gênios, eles preferem revolver o dia-a-dia do comum.
Thais Rivitti
Julho de 2017