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julho 3, 2017
Um rothko de parede e um caramujo de ângulos retos por Juliana Gontijo
Um rothko de parede e um caramujo de ângulos retos
JULIANA GONTIJO
Primeiro canto do universo que povoa nossa memória, a casa como imagem poética é a unidade funcional de uma topografia da intimidade. O espaço que foi um dia habitado congrega, nas ruínas da imaginação e da lembrança, a proteção, a solidão, o sonho e o devaneio de um passado sem descrição possível e, ainda assim, indelével.
Pintura de Parede e Elemento Vazado é uma topografia do delírio. Nela, Daniel Murgel torna as formas de habitar o espaço uma prática de reter e comprimir o tempo. Essa é a função própria do espaço, já que a memória não registra as durações concretas. “É no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais”, escreve Gaston Bachelard. O espaço se traduz, aqui, numa imagem da imensidão íntima, num devaneio de habitar lugares inabitáveis.
Como parte de um envolvimento simbiótico, uma escada se encolhe sobre uma mesa e uma mesa dá suporte a uma escada. Constroem juntas um refúgio, um espaço íntimo de solidão e defesa, um esconderijo com valor de concha de geometria violentamente deformada. Nessa marcenaria poética, as funções ordinárias de mesa e de escada são abolidas para se atribuir a função do irreal, produto direto da imaginação, que nos desperta dos automatismos cotidianos e, simultaneamente, nos remete a uma imagem primordial com a qual, imediatamente, nos conectamos. Essa escada para andar em círculos anula, igualmente, os estratos verticais de uma casa: é possível, então, chegar a lugar nenhum.
Uma mistura barata de cal, água e pigmento é aplicada na parede da galeria em múltiplas camadas de tons pastéis, como nas velhas casas dos vilarejos do interior. A parede pulsa na aparência lavada e translúcida resultante da sobreposição desigual de uma solução muito aguada. “Um Rothko de parede deve ser feito levando em conta o erro”, diz Murgel. E, portanto, o erro e a intencionalidade poética se confundem na composição que lembra os imensos campos de cor do pintor modernista Mark Rothko. Seguindo um tosco feitio artesanal, as grandes telas são transpostas à parede e a pintura a óleo volta ao cal dos antigos afrescos para envolver o corpo inteiro dos seres e das coisas e se comunicar com a intimidade de seus espaços conhecidos.
Nesse diálogo com o mobiliário e com a tradição da pintura, a arte popular e a erudita se encontram num barroco tímido e sintético, porém superdimensionado, que expõe a forma usual de construir espaços, memórias e histórias. Essa referência barroca, numa época atribulada e cética, chega distorcendo dramaticamente as formas conhecidas do real em efeitos forçados e violentos, em que o equilíbrio é o simulacro de uma falsa estabilidade. Frequentemente, o chão se dobra com uma façanha inesperada e a parede vibra, penosamente trêmula, sobrecarregada de tempo e silêncio.