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junho 21, 2017
Carolina Paz – Os desejos e os motivos do outro por Divino Sobral
Carolina Paz – Os desejos e os motivos do outro
DIVINO SOBRAL
Carolina Paz - Desejo Motivo, Auroras, São Paulo, SP - 24/06/2017
Na busca por motivos para dilatar sua pesquisa em pintura, Carolina Paz pôs em circulação na internet e na fachada de seu antigo ateliê a seguinte chamada: “Envie uma carta com seu pedido, desejo, assunto, motivo para criação de uma imagem baseada em sua história”. Assim, a artista acionou um processo de coleta de histórias e de solicitações a ela endereçadas, que resultou em uma coleção de cartas sobre a qual se debruçou para criar uma série de trabalhos. Firmou com diversas pessoas um contrato informal de troca, que rezava o câmbio de uma história por uma pintura, e estabeleceu uma área de relações e cruzamentos que, de certa forma, permitiu ao espectador ter determinado grau de participação na gênese da pintura.
Na coleção de cartas, agrupam-se narrativas de diferentes naturezas: memorialismo poético; crônicas do cotidiano; reflexões sobre a arte. Nos dois primeiros grupos, afloraram recordações da infância, afetos, relatos de solidão, saudade, felicidade, amargura, encontro, separação, casos de amor, problemas familiares, desejos de autonomia e independência, projetos de trabalho e de viagem, pulsões de vida e de morte. No terceiro grupo, emergiram problematizações de questões que envolvem o processo artístico aberto e permeável à intervenção de outro agente que não o artista.
No mundo contemporâneo, a forma de comunicação que tradicionalmente conhecemos como carta foi posta em xeque com a utilização de equipamentos tecnológicos, que gradativamente alteram os modos de comunicação humana. As facilidades promovidas pela velocidade e pelo alcance dos meios digitais (e-mail, redes sociais) tornaram a carta um veículo moroso, obsoleto, relegado ao abandono e ao esquecimento. Enfim, há ainda que se considerar que, em meio à crise das relações e da comunicação humanas, imperam a impessoalidade, a frieza da objetividade, a síntese e a abreviação que atendem ao imediatismo, o narcisismo e o egocentrismo que impedem de ver e de falar com o outro. O contrário parece não ter mais lugar, mas apenas parece.
Em Desejo Motivo, os meandros do processo de troca da narrativa escrita por imagem pintada ativam outro processo de troca entre subjetividades, no qual ocorrem compartilhamentos de intimidades, experiências, vivências, entendimentos e sentimentos. Na verdade, para a artista, o contato com outras pessoas inseridas em seu processo criativo, ao mesmo tempo em que amplia suas relações humanas, substancia e integra as obras da série Desejo Motivo. A conversação inicial, travada por meio de cartas enviadas por dezenas de remetentes a um só destinatário, ao cabo do projeto é aberta por meio da pintura ao público.
Apesar de terem como “assunto” e “motivo” temas literários, coletados no inventário de pedidos e desejos levantados junto àqueles que atenderam ao convite da artista, as pinturas resultadas ao final do processo não são literais e ilustrativas das motivações alheias que acarretaram suas existências. Com certa autonomia dos motivos compilados, elas obedecem a um raciocínio interno já presente na concepção das pinturas que integraram a série Teoria dos Conjuntos (apresentada há cerca de dois anos). Trata-se de um raciocínio que opera na produção de alegorias, reunindo fragmentos descontextualizados de suas respectivas origens, criando sentidos com a junção de partes tão heterogêneas.
As alegorias de Carolina Paz são construídas pela relação entre uma única imagem e outro elemento linguístico, tal como letra, palavra, numeral ou sinal. O segundo não atua como legenda do primeiro, embora em alguns casos sugira deslocamentos poéticos e trocadilhos semânticos. As alegorias funcionam visualmente também como espantoso método de alfabetização, no qual as figuras são acompanhadas por palavras, letras ou sinais tipográficos. O que a imagem de um pedaço de carvão tem a ver com a palavra “máquina”? Aí lembramos que a máquina a vapor (movida com a queima de carvão) carrega a mensagem subterrânea da viagem sonhada. Ou o que a imagem de uma bola tem a ver com a palavra “voa”? Pensamos no movimento da bola durante a cobrança de um pênalti. A figura de um coração é associada às letras A e O, que recuperam o som da palavra que nomeia a própria figura. De maneira estranha e desconfortável, parece haver algo impreciso que liga a imagem ao texto ou ao sinal, ainda que seja o simples som de um fonema.
Do ponto de vista formal, as pinturas seguem uma metodologia bastante econômica de procedimentos. As telas em pequenos formatos guardam a escala da intimidade e têm as bordas das superfícies e as laterais do chassi destacadas pelo uso de cores e por acidentes que reafirmam a condição da pintura não somente como superfície-imagem, mas também como um objeto no mundo. As pinturas representam fragmentos do corpo humano, elementos vegetais, animais e minerais, alimentos ou objetos de toda sorte, associados a palavras ou sinais, aplicados frontalmente sobre fundos marcados pela materialidade da tinta, ora empastada ora diluída, pelo movimento do pincel e por cores praticamente chapadas, porém desejosas de guardarem afetividades. Em Desejo Motivo, Carolina Paz arma um campo de possíveis articulações entre esses elementos (imagem e palavra, figura e fundo) e convida o espectador a explorá-lo.
Divino Sobral
Goiânia, maio de 2007.