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junho 21, 2017
Uma poética das relações humanas por José Bento Ferreira
Uma poética das relações humanas
JOSÉ BENTO FERREIRA
O mundo da arte resulta de um conjunto complexo de variáveis que envolve diversos aspectos do que genericamente se chama “cultura”, o que inclui nacionalidade, classe, várias forças econômicas, formas simbólicas, mídia e outras determinações. Essa complexidade, ligada ao perfil heterogêneo das sociedades modernas, que por sua vez se amplifica no mundo globalizado, não torna os rumos da produção artística aleatórios nem arbitrários, mas difíceis de prever, avaliar, interferir.
Intervenções bem-sucedidas no mundo da arte são o resultado de uma correta leitura desse “espírito de época”, ou desse “tempo-de-agora”, como diriam leitores dos filósofos Hegel e Benjamin. Assim, por exemplo, o filósofo e crítico Arthur C. Danto descreveu o trabalho de Andy Warhol como o de alguém que, ao menos durante alguns “anos milagrosos”, teve inteligência e sensibilidade para compreender os movimentos do mundo da arte e, por isso, ofereceu revelações sem precedentes acerca da própria natureza da produção artística. Em face da indecidibilidade inerente ao mundo da arte, a artista Carolina Paz cria Desejo Motivo pela observação de característica simples e antiga da natureza humana: a relação de interdependência entre os indivíduos no seio das sociedades.
O crítico Nicolas Bourriaud acredita ser possível erigir uma “arte relacional” alicerçada no universo das interações humanas, seja com “objetos produtores de socialidade”, seja provocando “momentos de socialidade” propriamente ditos. Apesar da generalidade do que pode ser considerado objeto produtor de socialidade – o que envolve quase todos os tipos de produção artística, a ponto de Bourriaud intitular seu pensamento de “estética relacional” –, os trabalhos com frequência considerados relacionais tendem à esfera conceitual e acompanham o movimento que o crítico Hal Foster descreveu como “horizontal”, em direção a questões políticas, sociais e culturais, por oposição à “verticalidade” das preocupações concernentes à especificidade do meio ou à autonomia do fazer artístico.
Sabe-se que as ideias de Bourriaud pertencem ao leque de referências teóricas da artista, que, por outro lado, exerce prática duradoura de pintura. Apesar de uma pintura poder produzir socialidade e do significado originalmente coletivo do “tema”, “motivo”, “assunto” da pintura (por mais enraizado que esteja, como descreve Klee no texto “Confissão criadora”), a pintura parece pouco afeita à arte relacional, sobretudo a pintura de teor intimista. Desejo Motivo surpreendentemente articula a produção pictórica introspectiva à ação de caráter relacional, iluminando o processo ainda cercado de mistérios da criação artística, conforme designa, com inteligência, o título.
O que motiva um artista a produzir determinado trabalho, a escolher determinada forma para o trabalho? Uma primeira leitura da expressão “desejo motivo” sugere falta de assunto, um posicionar-se frente ao esgotamento das linguagens artísticas que obriga a artista a recorrer aos espectadores em busca dos temas, invertendo a direção convencional da atuação da artista sobre o espectador, por meio da obra, por uma atuação do espectador sobre a artista por meio do texto que inspira a obra. Uma vez produzidas as pinturas e compartilhados os textos, essa primeira impressão, que talvez não seja de toda falsa, altera-se sensivelmente.
A heterogeneidade dos textos obtidos pela artista revela, contudo, um traço comum nas diversas maneiras de se tratar da necessidade de contato com os outros de que nem mesmo uma boa vida solitária prescinde completamente. A tensão entre a intimidade e o convívio se expressa pela memória do contato, pela procura por contato, pela própria consideração dos meios da escrita, da carta, da troca e da pintura como formas de contato humano real, por oposição às simulações que se impõem pelo trabalho alienado, pela privatização do espaço público ou pela iconomania das redes sociais.
Alguns textos atingem intensidade poética e elaboração formal. Outros evitam de modo intencional qualquer pretensão literária. Todos contribuem para o conjunto da obra com uma realidade humana sem a qual as pinturas produzidas por livre associação seriam uma “ciranda aleatória de signos descarnados”, como o crítico Fredric Jameson deplora no pós-modernismo. Com essa “realidade humana”, essas pinturas ganham o significado afetivo e coletivo que falta aos não-lugares por onde se passa sem deixar marcas, às imagens que tudo querem mostrar e, por isso mesmo, escondem o real. Aflora nos textos uma dimensão humana da experiência vivida, protegida pela intimidade da linguagem epistolar e pela garantia do anonimato.
O trabalho de arte propriamente dito não se restringe à pura forma visual das pinturas, o que as tornaria as únicas contrapartes materiais da obra. Os textos, as pinturas e o momento do encontro entre os missivistas e as pinturas são aspectos de um mesmo “objeto distribuído no tempo e no espaço”, conforme formulação do antropólogo Alfred Gell a respeito do corpus das obras de arte. As figuras que aparecem nas pinturas são como portas que se abrem para uma miríade de imagens produzidas coletivamente pelo contato estabelecido entre a artista e os participantes.
Com isso, Desejo Motivo inscreve-se na linhagem de experiências como a da psicanalista Nise da Silveira, que via na imagem a “porta para o mundo interno” dos pacientes, alguns dos quais se tornaram artistas chancelados pelo mundo da arte; ou de Lygia Clark, que transitou da produção artística para a prática terapêutica, com seus “objetos relacionais”, que não são obras de arte, mas partes de uma obra de arte que é o próprio uso sobre os “clientes”, que seria mais ou menos bem-sucedido na medida em que esses fossem capazes de produzir e relatar imagens internas a partir da experiência a que se submeteram. A grande diferença entre Desejo Motivo e a “estruturação do self” é que temos acesso aos textos que deflagraram as imagens do trabalho de Carolina Paz, desvendando o mistério, como diria Danto; ao passo que os registros de Lygia Clark permanecem quase todos desconhecidos por causa da disputa dos herdeiros por direitos autorais. A ideia de um “objeto distribuído” composto por cartas, pinturas e por um encontro aponta para uma definição de imagem que não se restringe à visualidade da figura, mas envolve diversas interações entre figura, corpo e meio, tal como pensa Hans Belting, autor de Uma antropologia das imagens.
O jogo livre entre significado e significante é um aspecto central de Desejo Motivo, uma vez que a série se constitui pela associação entre figura e palavra (ou sinal gráfico). O procedimento retoma a associação livre surrealista e implementa uma “produção automática de causalidade”, conforme descrição do crítico Peter Bürger para o legado das vanguardas históricas depois do fracasso das intenções vanguardistas. Sobreposição ou montagem também caracterizam o conceito pós-vanguardista de obra de arte segundo Bürger e aparecem explícitas no trabalho de Carolina Paz. A figura desmente o caráter apenas indicial do sinal gráfico; antes, dá-lhe vida. Já o signo modula a figura, altera o seu sentido e indica, talvez no fundo, uma terceira dimensão da imagem, que não se deixa definir claramente, inapreensível, indizível e irrepresentável, mas ao mesmo tempo interpessoal, afetiva e vivida: um contato humano real, para além de toda simulação.
As pinturas de Carolina Paz poderiam ser admiradas independentemente do conjunto de relações travado em torno delas, mas isso equivaleria a considerar uma obra de arte a despeito do contexto histórico, do posicionamento em relação aos outros, da própria vida dos artistas (as cartas escritas por eles). Não estamos dispostos a sacrificar o mundo da vida, nem mesmo quando nos vinculamos a uma certa visão modernista de arte. Assim, não apenas as cartas, com desejos-motivos, devem ser consideradas partes constitutivas do trabalho, mas também o momento que a artista chama de “acontecimento”, termo que a teoria opõe a “evento”, como algo que irrompe no real de maneira espontânea, inexorável e imponderável.
Como foi dito, Desejo Motivo opera na chave da “produção automática de casualidade”. Apesar do planejamento das fases do trabalho e do controle técnico da prática da pintura, ou justamente por causa deles, um alto grau de imponderabilidade apresenta-se no perfil dos participantes, no resultado das pinturas produzidas por meio de associação livre e, por fim, mas não menos importante, no momento tradicionalmente significativo para a prática da pintura quando o trabalho for entregue. A história da arte de fato está repleta de relatos sobre deslumbramentos e incompreensões nesse contexto de revelação. Ecos da história da arte serão visíveis no momento em que os autores das cartas buscarão, em meio à série de pinturas, aquela que traduz a sua própria história. A diversidade esperada de reações completa Desejo Motivo, tornando-o uma espécie de diagrama da experiência de expressão artística, revelando as relações que conectam autor, obra e público.
Mas a imagem-acontecimento desse momento de retribuição pelas cartas enviadas não é apenas uma conclusão; deve reverberar, produzindo novas relações. As pinturas serão levadas com as pessoas, mas podem ser expostas em outras circunstâncias. Assim, os “desejos-motivos” dados e retribuídos permanecem inseridos no contexto de uma troca sistemática de dádivas que estabelece um determinado registro da circulação de imagens. Dúvidas, emoções, estranhamentos, hesitações vividas pelos participantes ao escrever suas histórias serão redimidas e compartilhadas nesse encontro, na imagem-acontecimento que é também uma imagem-dádiva. A realidade humana não é apenas de interdependência, mas imaginal, isto é, mediada por imagens, seja nas relações interpessoais, seja na relação com o mundo, entre o ser e o mundo, tanto quanto entre o ser e os outros.
José Bento Ferreira,
Junho de 2017.
Carolina Paz - Desejo Motivo, Auroras, São Paulo, SP - 24/06/2017