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maio 21, 2017
Luiz Zerbini por Marcelo Campos
Luiz Zerbini
MARCELO CAMPOS
A observação sobre a paisagem ativou, na arte, distintas vinculações que resultaram tanto em questões relativas ao sublime, ao mítico, ao erótico, quanto em reflexões mais ambientais ou, até, que reverberaram em narrativas culturais, políticas, denunciatórias. A paisagem, da pintura de Poussin ao videogame, como nos informa Anne Cauquelin, pode nos oferecer espaços mentais, literários, mundos virtuais, visões do futuro que nada mais são do que nosso “aprendizado da realidade do mundo”. [1]
Na pintura de Luiz Zerbini, a paisagem adquire conotações variadas. Ora nos deparamos com ambientes mais desérticos, onde a presença humana parece rarefeita, ora observamos restos e vestígios da passagem de um acontecimento inapreensível, pois só nos restaram pistas espalhadas pelas areias das praias.
A paisagem na obra de Zerbini nos coloca, também, em direção a prazeres de todo tipo. Nos remetemos, assim, à Alegria de viver, célebre pintura de Matisse, de 1905, onde a paisagem se modificara com cores inusitadas e, ao centro, exibe-se uma cena de dança, em roda, referência ao primitivismo em curso na época. De modo intensificado, menos com a situação selvagem e primitiva, Luiz Zerbini se direciona mais aos momentos seguintes da passagem humana por uma natureza idílica. Assim, os usos e excessos dos prazeres da civilização, as festas, os encontros, não deixam de ecoar sentidos de gozo, visões paradisíacas, ainda que não tenhamos acesso ao acontecimento em seu momento pleno. Ao contrário, vemos imagens escaparem da acepção histórica e épica da representação. Nos perguntamos, então, sobre o que acontecera no espaço em um tempo que nos foi sequestrado. Com isso, vestígios de possíveis construções improvisadas, madeirites, bancadas de azulejos como as encontradas em açougues são testemunhos de prováveis apresentações musicais ou barracas de comercialização. Em tudo, o sentido da gambiarra, do contra-uso, dos modos desestruturantes presentes nas arquiteturas espontâneas e, de certo modo, ingênuas. Vemos caixas de som, fiações, restos de alimentos, tudo hibridizado. Também vemos hibridizações naturais, bromélias que se misturam com outras espécies de vegetação, cores que se superpõem em camadas e combinações inusitadas.
Justamente o choque e o encontro com o inusitado, porém possível, a partir de determinadas incidências luminosas, trazem para a recente pintura de Zerbini o lugar daquilo que Didi-Huberman chamou de “rasgadura”. [2] Um cano grafitado nas margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, por exemplo, incita o início de um processo experimental, em que a adição de elementos configurará um ambiente quase fabular, porém forjado no presente. A rasgadura, dirá Didi-Huberman, é “debater-se nas malhas que todo conhecimento impõe”. [3] Para isso, Zerbini busca, na imagem, sua contraposição. Também se interessa por malhas, tramas ortogonais, trazidas pela cultura de detalhamentos arquitetônicos, das empenas de prédios, de ondas sonoras, de venezianas. Diante da plácida cena de uma paisagem, uma praia, por exemplo, vemos o sentido de oposição quando a cena (rasgada) se transforma pela destruição causada por uma onda. Assim, o artista insiste, força a imagem, repete padrões modificando-os e encontrando falhas.
A condição do gesto em contracepção encontra, em Zerbini, o rompimento da “caixa refletora” da representação. Didi-Huberman nos explica que a representação é um “dispositivo de encerramento”, uma caixa de reflexão e reflexos, que nos incita a saber e ver, pensar e espelhar. “É preciso tentar romper essa zona refletora na qual especular e especulativo concorrem para inventar o objeto do saber como a simples imagem do discurso que o pronuncia e que o julga.” [4] A pintura, com isso, se imbui de uma dupla tarefa, “tornar visível”, como nos diria Paul Klee, e fazer-se consciente e sabedor do que se coloca diante do ver através de fabulações, onde signos são também enigmas. Com isso, esses gestos de representar e escapar, apresentar e desfazer produzem um sujeito atormentado que “recusa a miséria do prisioneiro” e o “triunfo do maníaco”. Ou seja, ao se quebrar a “caixa da representação” propondo para a imagem o seu algoz, Zerbini se aproxima da tormentosa tarefa de desfazer-se do olho como dispositivo para a “figura figurada”, advinda das experiências empíricas do mundo. Antes, ao contrário, Zerbini se interessa pela “figura figurante”, aquela que resulta de um processo experimental, fixando, na superfície pintada, o que pode “vir a ser visível” e, com isso, conferindo-se sentidos outros ao que o olho vivenciou.
Há, na produção de Luiz Zerbini, outros aspectos. Não se percebe, no uso e apropriação de elementos do mundo, a energia da perda, do nostálgico de um tempo pretérito. O que vemos se configura, muito mais, como um capote, um jump, uma viagem, de certo modo, lisérgica, que se revela em transformações. A vegetação cresce selvagem, em superposições que nos ampliam o sentido de ruína, do não domesticado, mais natureza do que paisagem. A apropriação de padrões e módulos arquitetônicos, cobogós, muxarabis planifica a visão, bidimensionaliza o desenho. Mas, concomitantemente, a mesma superposição traz, para o ambiente, um lugar impossível, a seu modo onírico. Nos sonhos, dirá Didi-Huberman, “rompe-se a caixa da representação... onde a semelhança trabalha, joga, se inverte e se dessemelha... onde figurar equivale a desfigurar”. [5] Pensa-se, assim, o tecido da representação e sua rasgadura, a função e seu desfuncionamento.
A aplicação de planos e geometrias coloca a produção de Luiz Zerbini em consonância com as questões do ornamento. Fruto de objetivos antifuncionais da sociedade, o ornamento guarda potências desestruturantes e eróticas. Para além da edificação de colunas de sustentação, as culturas se dedicam a volutas, excessos, apêndices, “dispêndios”, nos termos de Georges Bataille. Em Zerbini, o excesso de ornamentos, que já nasce do excesso de gestos repetidos, ativa, a partir da intensidade do uso, vinculações ampliadas na cultura e na sociedade: pinturas corporais indígenas, rendas, grades, redes. Porém, a mesma intensidade de uso nos incapacita, ao olharmos a produção do artista, o reconhecimento literal e concatenado das mensagens. Não estamos diante de uma aldeia, nem tampouco reconhecemos casas modernistas. Ao contrário, os signos se adensam em pedaços de varandas, sacadas, que, de modo enigmático e metamorfoseado, não nos deixam adentrar a casa. Uma onda do mar vira cobogó que se transforma no oco de uma caixa de som. A onda se desfaz, como fenômeno natural, em padrões ornamentais de circunferências ritmadas que poderiam gerar gravuras de Hokusai ou composições de Sérgio Camargo. Partidos e padrões de várias épocas fazem do uso do ornamento, em Zerbini, uma lição. De início, são as vicissitudes do olhar que coleta informações de um caminhante, um turista. Tudo é possível de acontecer. Porém, a mixagem de tantas informações nos transporta a uma espécie de sonho em que as coisas, no instante em que se formam, nos escapam, evanescentes. A mixagem advém de um mundo pós-produzido, onde produção e consumo se aliam, nos termos de Nicolas Bourriaud, atribuindo “valor positivo ao remake”, articulando usos, relacionado formas, “em lugar da heróica busca do inédito”. [6] Por outro viés, Zerbini atenta ao gesto espontâneo e irrefletido dos que não se rendem ao simples mecanismo da revolução industrial e midiática (ou das normas construtivas), mas que são prenhes da consciência desse mundo. E, com isso, não há contentamento em olhar de frente o mundo pré-codificado pelo anúncio, nas cores dos reclames ou nos supostos paraísos artificiais da pop art. Antes, vemos a irregularidade das manufaturas, madeiras amarradas com cipós, como no banco para portão, obra-prima de Lina Bo Bardi.
Na produção de Luiz Zerbini, percebemos frestas, fissuras, rachaduras que ao aparecerem possibilitam profundidades e rasgaduras no quadro. Em vez de pontos de fuga explicitados, Zerbini, como Pancetti, prefere as vagas e quase monocromáticas divisões horizontais. O ornamento, justamente aí, servirá como anteparo, localizando-se em planos diversos. É nas frestas que se capacita a observação da profundidade dos trabalhos. A fresta deixada pela ausência de um slide, pela rachadura de uma parede de azulejos, pelo despregado de um vidrotil, pela falta de um falante em uma caixa de som.
Na produção recente das gravuras, Zerbini encontra outras possibilidades de lidar com a natureza e com a paisagem. As embaúbas e os abricós-de-macaco, recorrentes em suas pinturas, agora se presentificam, pois o artista os usa não como representação, mas diretamente, para sensibilizar a superfície dos papéis. Zerbini aplica a própria folha das plantas para gravar o papel em jogos de cheios e vazios, pretos e brancos, que parecem, de outro modo, deixar vestígios reais, nódoas, seivas, entrecascas explodindo em cores e substâncias. A gravura, assim, também configura uma condição de rasgar o mundo em pedaços, gesto recorrente na produção do artista, pois explora-se a incompletude da representação, o deslocamento para as bordas da página, como se angulássemos a câmera fotográfica apontando-a para os intervalos.
O ateliê, outro lugar de fixação e coleta de referências na produção do artista, pode se metaforizar em mesas, armários e bases, como em um amplo gabinete de curiosidades. Desde Observação e reflexão, obra participante da exposição O Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli (2008), Luiz Zerbini ativa um procedimento que transforma a ideia de gabinete científico, onde vemos espécies de plantas, ossos, pedras em grandes mesas repletas de vidros como tubos de ensaio. O sentido de coleta e pesquisa, o interesse em destacar a beleza do detalhamento das plantas, a estranheza de perceber o desenho de uma ossatura se tornam protagonistas nas estruturas expositoras. De modo análogo, Zerbini usa óleos que expandem a visão. A mesa-gabinete-ateliê se ampliara, incorporando, em 2012, muitos elementos. Para além de componentes naturais, o artista adensou características pictóricas que se expandiram em padrões, areias, vidros que geravam reflexos, alterando as cores de planos superpostos. Com isso, a condição da pintura se faz ainda mais presente, como se a observássemos desde cima.
Para esta exposição no Santander Cultural, o artista nos propõe uma ampliação desta mesa. Luiz Zerbini, agora, condensa Observação e reflexão (2008), Amor (2012), Onda (2014) e Paisagemnaturezamortaretrato (as colunas caíram do céu) (2008). Esta última obra configurou um momento de experimentação, no qual o artista ocupara o Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, pintando de cores fluorescentes as colunas da sala e realizando três pinturas com tintas que espelhavam, pelo alto brilho, quem estivesse diante da obra. Nos formatos, Zerbini trabalhou com a escala do retrato, da paisagem e da natureza-morta. Na mesa apresentada nesta exposição, o artista parte dos efeitos imagéticos da pintura Onda para, agora, recortá-la de modo tridimensional. As bordas das estruturas da mesa são coloridas, como no site specific do Maria Antonia.
Nos colocamos a imaginar, frente ao exposto, que rasgar a pintura é tarefa seminal na produção de Luiz Zerbini. Mais do que isso, percebemos que, diante da imagem, a evanescência resulta de visões de mundo que aliam o estado de espírito da alegria de viver à busca por lapsos de memória, em que não se condicionam os contornos precisos das coisas e dos acontecimentos, num jogo entre observar a paisagem e seus diversos anteparos. Assim, os sintomas do mundo vêm “se aninhar em nossos próprios olhos, nos desnudam, nos rasgam, nos colocam em questão, interroga nossa própria capacidade de esquecimento”. [7]
1 Cauquelin, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 15.
2 Didi-Huberman, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013.
3 Idem, p. 185.
4 Ibidem.
5 Idem, p. 190.
6 Bourriaud, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 45.
7 Didi-Huberman, op. cit., p. 208.
Zerbini, Barrão, Albano no Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 24/05/2017 a 16/07/2017:
Luiz Zerbini, curadoria Marcelo Campos
Albano Afonso, curadoria Douglas de Freitas
Barrão, curadoria Felipe Scovino