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maio 21, 2017
Luz encarnada em corpo / corpo evanescido em luz por Douglas de Freitas
Luz encarnada em corpo / corpo evanescido em luz
DOUGLAS DE FREITAS
O chiaroscuro, que nasce na pintura renascentista do século XV, é uma estratégia para a representação dos contornos. Com ela, os objetos e figuras das pinturas deixam de ter contornos lineares, passando a ser definidos por imersão em luz ou sombra.
Albano Afonso produz em suas obras uma reflexão sobre a tradição da história da arte. Seus trabalhos partem dos gêneros e temáticas provenientes principalmente da história da pintura, em que, não por coincidência, a questão “luz e sombra” se apresenta como elemento central. São luz e sombra, ou o chiaroscuro, que conferem volumetria às pinturas de natureza-morta, dramaticidade às pinturas históricas, mistério e melancolia às pinturas de paisagem, poder e força aos retratos e autorretratos. O princípio primário de fidelidade na captura do real aos poucos passou a dar lugar a estratégias de expressão; trazer à luz ou deixar-se esvair na escuridão passa a ser ferramenta compositiva conceitual na pintura.
Junta-se, a esse princípio, a fotografia como técnica, meio e pensamento. Com a invenção da fotografia, o real pode ser captado pela imagem fotográfica, e a pintura se liberta de sua função primeira, que era representar, imortalizar uma situação ou pessoa, podendo, e precisando, se reinventar. Vale lembrar que o processo fotográfico se faz por luz. É a luz rebatida nos objetos que, através da lente, marca o filme; e, posteriormente, é também a luz que atravessa o filme e grava a imagem no papel.
Essa conversão de luz em imagem é o que confere certa fantasmagoria às fotografias. A ideia de reprodução fiel feita por uma máquina capaz de conferir materialidade a uma imagem, que captura um momento específico, aprisiona um instante para que ele permaneça ali como memória daquela existência, é assombrosa se olharmos além da naturalidade com a qual encaramos as imagens hoje, em um mundo convertido e mediado por elas. A fotografia é a possibilidade de reviver um momento passado, mesmo que parcialmente; de trazer à luz memórias que estavam imersas na escuridão do tempo; de, até certo ponto, presentificar alguém ou algo que já não está mais presente.
A ideia de binômio se apresenta; afinal, luz e sombra, apesar de opostas, andam sempre ligadas e são inseparáveis. A existência de uma depende da ausência da outra, ou de uma constante batalha de existência compartilhada. Para além desse princípio físico, a ideia de oposição e dependência entre luz e sombra se amplia como metáfora estabelecida, também pela tradição, para diversos outros binômios como bem e mal, esclarecido e misterioso, sagrado e profano, vida e morte, entre tantos outros.
As imagens, instalações e objetos de Albano Afonso estão irradiados por essas ideias. Os trabalhos produzidos pelo artista constantemente fazem menção a pinturas consagradas pela história da arte; ou, se não mencionam diretamente, são compostos a partir de elementos que deixam claro a referência a elas.
Suas esculturas são naturezas-mortas de luz. Em Natureza-morta de 2017, ossadas, frutas e jarros revestidos de espelhos perdem a definição clara que duas matérias lhes conferem para refletir luz. Perdem também identidade, viram apenas formas ausentes de alma. A matéria viva suscetível às ações do tempo está cristalizada e agora é perene. Enclausurados em uma caixa de vidro, esses objetos estão ao alcance da luz e da visão, mas indisponíveis ao toque. Residem ali, eternizados, porém mortos.
Em O lobo e os pássaros, as peças que formam a escultura são mãos em diferentes posições. Fundidas em bronze, negam a luminescência das peças espelhadas; são opacas e densas. Banhadas por luz, projetam-se no espaço encenando a presença de pássaros e um lobo. Constroem a mágica de um teatro de sombras, onde uma forma é convertida em outra, e a matéria se desconstrói para revelar uma cena onírica.
Esse cenário onírico de luz – que parece viver entre momentos reais, o universo dos sonhos e as próprias referências históricas da arte – se amplifica ou se reduz em escala, mas é uma constante no trabalho.
Ambientes imersos numa atmosfera construída por projeção e refração, onde cristais replicam ou refratam a luz se atravessam as obras. Em Anatomia da luz nº 3, galhos de árvores se juntam a cristais e ossos espelhados. As formas se misturam e se complementam, gerando outras formas. Suspensas, essas peças se movem delicadamente, rebatendo a luz nelas projetada. Surge então um espaço em constante movimento, de embate entre formas definitivas e provisórias. As peças que compõem a obra permanecem as mesmas, mas a movimentação delas rebate luzes inconstantes, que dançam pelo espaço.
Brilho, reflexo e refração se tornam objeto de estudo e assunto das obras. Na série Cristalização da paisagem, fotografias de paisagens, entre parques, matas fechadas e imagens históricas, se cristalizam. São imagens trabalhadas digitalmente pelo artista para se converterem em geometria e cor. É como se a luz rebatida pela natureza ganhasse corpo e se concretizasse em massas de cristais coloridos, que por vezes se apresentam sutilmente; mas, em Jardim Botânico, Rio de Janeiro, essa massa cresce continuamente até que toma toda a imagem, como um nevoeiro intenso, ou uma cegueira cromática. Não há mais perspectiva possível ou ilusão de acesso. A paisagem antes permeável agora é matéria sólida.
Imagens de luzes e de brilhos e a própria paleta luminosa característica do dia e da noite, novamente binômios, são acompanhadas de composições de naturezas-mortas de objetos espelhados nessa série de quatro fotografias produzidas entre 2006 e 2007. Natureza-morta com floresta e Natureza-morta com céu se apresentam diurnas, com tons ensolarados. Natureza-morta com estrelas e Natureza-morta com luzes são a escuridão e as luzes que ela aceita, ou que inevitavelmente carrega com ela. Aqui, assim como em algumas esculturas, se vê parcialmente o artista. Se, nas esculturas, a presença do artista está convertida em partes do corpo fundidas em bronze, ausentes de vida, mas moldadas a partir do artista, nessas imagens surgem traços fantasmagóricos de suas mãos manipulando esses objetos espelhados. É essa a alquimia que Albano opera: luz e corpo se convertem em matéria sólida e opaca, e matéria sólida e opaca se converte em imaterialidade e luz.
Zerbini, Barrão, Albano no Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 24/05/2017 a 16/07/2017:
Albano Afonso, curadoria Douglas de Freitas
Barrão, curadoria Felipe Scovino
Luiz Zerbini, curadoria Marcelo Campos