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maio 14, 2017
Porto Alegre, 14 de setembro de 2074 por Bernardo José de Souza
Porto Alegre, 14 de setembro de 2074.
Àquela altura do tempo, a triste notícia de que não mais poderíamos viver em direto contato com o mundo exterior nos havia pego a todos de surpresa, pulverizando na atmosfera nociva uma insuportável carga de pessimismo e derrota: a natureza passara a representar uma ameaça letal à nossa existência,. Parecia estar, por fim, decretado o definitivo apagar das luzes de nossa precária civilização.
Em compasso de desastre, era dada por perdida nossa inglória batalha contra o mundo tal qual nos havíamos acostumado a percebê-lo, povoado por homens que exercitavam com vigor e astúcia seus inafastáveis desejos de controlar toda e qualquer espécie de vida, de brincar de Deus, exercitando sem medidas uma onipotência que jamais lhe havia sido outorgada.
Experimentávamos um inexorável, embora inesperado, brutal revide das forças naturais e, assim sendo, não mais à espécie humana deveria ser atribuído o papel de inclemente algoz; a partir dali, estaríamos libertos deste fardo maior, o de havermos exaurido nossa fonte de vida e condenado à morte nossa própria mãe. Diante dos fatos imponderáveis, o exercício da crueldade aparentemente passara a ser obra da natureza, do destino, resultado de sua fúria antes jamais vista, a qual prometia varrer para sempre homens e mulheres da face da terra.
Foi por isso que decidimos nos refugiar, encontrar abrigo em um sistema artificial de subsistência, um espaço de isolamento, de pesquisa e mera contemplação - um ambiente altamente controlado, refratário a experiências reais, a um vivo contato com o mundo, com o acaso, enfim, com o erro.
Capturados naquele regime de exceção, passaram-se anos sem que pudéssemos nos banhar nas águas do rio que corria diante de nosso olhos, ora modorrento, ora turbulento, mas sempre marcando a correnteza do tempo, de nossas frágeis vidas, de nosso irrefreável envelhecimento. Enclausuradas neste museu que nos servia como bunker, as crianças foram se tornando adultas, os dias passando, e o horizonte se foi encurtando de forma a turvar nossa visão, a esgotar nossos mais caros dilemas econômicos, políticos ou metafísicos.
Num dado dia, em meio à rotina perversamente desalentadora, algo de novo sucedeu, ou melhor, algo que não havíamos previsto no curso de nossa embotada existência, sempre tão marcada por apostas definitivas, por cartadas irresponsáveis, por promessas de futuro jamais alcançadas. Ao cabo de um largo período em quarentena, nos era por fim devolvido um último suspiro, uma derradeira lufada de ar fresco naquela "arca de Noé" hermeticamente lacrada, em tese incólume ao perigo que nos rondava, diuturnamente, por detrás das escotilhas de onde antevíamos o desastre maior; de maneira intempestiva, uma porta foi aberta, escancarada, por uma das últimas crianças a brincar solitária no pátio interno de nossa fortaleza.
Sob o efeito da brisa que chegava da rua, um primeiro homem foi por ela abatido e depois um segundo e um terceiro e um quarto e um quinto, até que, como num passe de mágica, nenhum outro de nossa pequena comunidade passou a sofrer mal algum. Já éramos muitos reunidos no átrio. Inertes, porém vivos.
Então, aos poucos, estranhos começaram a ocupar nosso território, a invadir nosso espaço de reclusão e medido conforto. Vinham aos grupos, em comitivas, como quem chega a um novo planeta, estupefatos sem entender em qual armadilha se haviam aprisionado aqueles pobres seres que não mais possuíam coragem para dar um passo adiante, para imaginar um desvio para o futuro, uma passagem para fora, para um outro mundo, um novo mundo, quiçá um mundo melhor.
Bernardo José de Souza
Depois do fim, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS - 19/05/2017 a 12/08/2017