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maio 7, 2017
A construção de um paradigma: nas tramas do tempo por Daniela Bousso
A construção de um paradigma: nas tramas do tempo
DANIELA BOUSSO
“aqui tudo parece que ainda é construção mas já é ruína...” (1)
Regina Johas opera um viés transdisciplinar na exposição Tristes Trópicos_Bom Jardim, em que aborda a dura realidade brasileira e sua estagnação no tempo. A mostra é um desdobramento do trabalho de investigação que resultou nas séries fotográficas Remanências e Sendas, realizada em Natal no final do ano passado.
A artista partiu da captura de um monumento em ruínas – memória apagada de relatos e saberes da Fazenda Bom Jardim, situada no município de Goianinha (RN) – como se fossem frames de um antigo filme fotográfico, evocando o negativo da foto no rebatimento entre passado e presente. Se nos anos 1960 as seriações e repetições foram utilizadas por artistas como Andy Warhol para refratar ícones no vazio, em contraponto a uma sociedade de consumo, as repetições nas séries fotográficas de Johas funcionam agora como evocação poética do tempo, quase a querer revisar os procedimentos de conjugação entre movimento e tempo operada por Marey com a cronofotografia.
Tudo é tempo em sua obra e as fotos evoluem para a forma do vídeo nas três vídeo-projeções apresentadas em Tristes Trópicos _ Bom Jardim (Frestas, Chico Antônio e Ruínas Urbanas), acompanhadas da instalação sonora Quanto coco se dança. Esta última consiste num espaço sonoro gerado a partir da apropriação de um coco – forma poético-musical do folclore rural nordestino – espacializado e dilatado no tempo a ponto de a melodia do coco ficar irreconhecível.
Em Tristes Trópicos _ Bom Jardim os três vídeos são sobrepostos por outras imagens autônomas alocadas no espaço, operadas por projetor de slides e retroprojetor, que se somam aos computadores e projetores datashow, o que dota a mostra de mais uma camada de complexidade, dada pelo número de dispositivos com que lida.
O vídeo Frestas,diz Reg (2), “mostra a fazenda – eternizada nas memórias do livro “O Turista Aprendiz” (3) – que abriga hoje, em estado de quase desaparecimento, a casa em que o poeta se hospedou por ocasião de sua viagem ao Nordeste. Lá, ele coletou documentos musicais populares e conheceu a arte do cantador potiguar Chico Antônio”.
Já em Chico Antônio, a obra parte de uma única foto, a imagem de Chico Antonio já velho, e explora os defeitos da TV nas faixas de cor, como nos primórdios da videoarte. Em Ruínas Urbanas a artista registra esqueletos de edifícios abandonados na cidade de Natal. Imagens sem cor são projetadas em vídeo ao modo de um carrossel de slides, com sonoridade que outra vez evoca o passado: cada vez que a imagem muda ouve-se um “cleck”, como nos sons emitidos pelos antigos projetores Super 8.
Simulação é a chave, a porta de entrada para a compreensão da poética de Johas. A meio caminho entre foto, cinema, vídeo e pintura, a artista solicita o olhar do observador por meio de uma espacialidade específica,unidade de medida quase minimalista, a fenda, que permite à visão adentrar por camadas: foto, vídeo,fresta, cor, outra vez foto. Sobreposição e movimento, cor e ornamento, presenças que registram o excesso e o acúmulo, ressaltam o diálogo entre forma orgânica e forma geométrica simulada.
Nesse convívio entre ordem e caos, a totalidade não pode ser recomposta. A fachada da ruína colonial hoje é apenas uma casca: por trás dela tudo é mato. Em meio às frestas, um quase nada se vê. Da cor que restou na fachada, sobrevive um fragmento. A partir da sua memória, o vislumbre de uma paleta: toma-se um pixel e obtém-se a cor e seu código no fotoshop, criam-se as faixas verticais que compõem as camadas como a designar as fendas.
No conjunto das obras, o tempo em suspensão entre imagem matriz e imagem serial, “quase móvel”, juntamente com a variedade de dispositivos, produz a multiplicação de vetores, a complexidade da operação demarcada sobre as diferentes temporalidades da imagem, entre a fotografia, a pintura e a forma cinema. A condição ambígua emerge a meio caminho entre procedimentos do universo da pictorialidade e o da apreensão do referente.
Nesse intervalo surge a intersecção, lugar intermediário, um desvio da imagem que a princípio é digital, numérica. Imagem de síntese, que paradoxalmente nos permite o retorno à essência manufaturada da pintura. O digital aqui é adulterado; o desvio talvez queira evocar o olhar contemplativo, à moda antiga, característica das sociedades pré-moderna e moderna, que erigiram os referentes protagonistas, as construções; são elas que permeiam o sentido da mostra e contrapõem o rural ao urbano, a memória ao esquecimento, a temporalidade moderna à temporalidade atual do fazer artístico.
Um misto de cultura versus artifício impregna essas imagens, que reivindicam o pouso do olhar e a imersão. O procedimento híbrido constela-se no ato fotográfico via dispositivo, uma câmera Laica – e expande-se à pintura e ao vídeo, via digital. O acréscimo de camadas cromáticas à imagem original cria o embate com o tempo, com a arte, com a história da arte e com a arte contemporânea; as camadas finais sobrepostas à imagem de gênese entram em duelo com a temporalidade dos referentes.
Isso se torna mais e mais claro quando as imagens são deslocadas da sua condição inicial – foto pictórica – e passam a ser mostradas como vídeos. No vídeo as imagens em loop contínuo nos trazem o plus do movimento, mais uma demanda que convoca o olhar para dentro do espaço projetivo.
Ao produzir registros que ressaltam a precariedade que mina a nossa identidade cultural, Reg reflete sobre as relações entre capitalismo tardio, resquício do colonialismo e seus processos de apagamento da história. Pelas vias do paradoxo, criado na tensão entre imagem matriz e imagem em movimento, o tempo, soberano, é contido dentro das faixas de cor e promove o embate com a atualidade no ato de ver. Eis o paradigma poético criado por Reg Johas nesta mostra.
Daniela Bousso, 2017
Notas
(1) “Fora da Ordem” música do início dos anos 1990, de Caetano Veloso, que relembra a obra “Tristes Trópicos” de Claude Levy Strauss, de 1955.
(2) Reg é o apelido que a artista recebeu de seus colegas quando entrou na FAAP, onde cursou Artes Plásticas, entre a segunda metade dos anos 1970 e início dos anos 1980. Até hoje a chamamos assim.
(3) Mário de Andrade, “Turista Aprendiz”.Brasília DF: Iphan 2015.