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abril 30, 2017
As Desbandeiras de Julio Leite por Adolfo Montejo Navas
As Desbandeiras de Julio Leite
ADOLFO MONTEJO NAVAS
Nada como uma época tumultuada de signos, símbolos e emblemas para reconhecer o bastidor imagético que tem as bandeiras, seu pertencimento e inscrição nas coordenadas da história, milenar ou recente. Algum dicionário – como o do poeta Juan Eduardo Cirlot – registra a sua genealogia, derivada da insígnia totêmica, e seu lugar alto e colocação elevada, correlata à exaltação imperiosa ou então signo de vitória e autoafirmação. Mas, além de ser uma ferramenta de educação sentimental, as bandeiras, como bem se sabe, também produzem fundamentalismos de todo tipo, sobretudo nacionais – aquele narcisismo da pequena diferença, como dizia Freud sobre os nacionalismos –, que encontram na bandeira uma transferência icônica ou, pior, arrastam à cegueira ideológica, religiosa ou militar. Desde as Cruzadas aos logos nazistas, ou desde a Klu Klux Klan ao Estado Islâmico, por exemplo, faz parte de qualquer comunidade ter seu próprio pano de tecido retangular ou quadrado precisando tremular ao vento.
Contudo, não é a primeira vez que a arte se aproxima da interpretação aberta das bandeiras; lembre-se de passagem as iconografias diferentes de Jasper Johns e George Maciunas ou então os mapas-bandeiras internacionais de Alighiero Boetti ou aquelas sendo comidas pelas formigas de Yukinori Yanagi. Mais próximas, geograficamente, são as bandeiras mais particulares de Hélio Oiticica (Seja marginal, seja herói) ou a bandeira local (em negativo) do Complexo do Alemão de Paulo Climachauska. Mas o trabalho de Julio Leite tem seu próprio raio de ação, e se inscreve numa utopia estética mais contígua, na inversão cromática de bandeiras nacionais relativizando completamente a percepção a rigor já codificada, até tal ponto que deixa em suspenso a associação oficial e comum – instintiva – que temos cada qual dessa relação, o que serve de distintivo, identidade. E este deslocamento visual que se produz bate cada vez mais de frente com o espírito da época, cada vez mais relutante a não deixar de instrumentalizar os signos coletivos, seja como propaganda ou proselitismo, para algum proveito ou lucro. Recentemente, e serve como exemplo paradigmático, a folia nada naïf do impeachment submeteu a bandeira do Brasil a uma instrumentalização ímpar; de fato, o exercício de manipulação de símbolos pátrios por parte da direita mais recalcada (seja política ou social) já é um mainstream político.
A série Projeto para um Novo Mundo “tem como conceito as alterações sociais pelas quais o planeta tem passado nas últimas décadas. Os processos migratórios, a fome, as guerras, as mudanças climáticas têm modificado substancialmente os mapas, as delimitações de fronteiras, o acirramento das questões ideológicas e a intolerância como princípio predominante nas relações entre os povos”, aponta o próprio artista, para sinalizar o território abissal em que cada vez mais se inserem as bandeiras, com sua simbologia de outrora. Aliás, o dilema delas talvez seja o fato de que a geografia política de onde emergem – assim como a sua correspondência social – encontra-se em parte em suspenso, litígio, mutação, como o anúncio de um desequilíbrio histórico – sempre maior que estético – que qualquer ar da época altera, conduz a revisar ou contemplar com outro olhar.
Nas antípodas, portanto, de um quadro tranquilizador, a situação que apresenta Julio Leite através da transmutação de suas outras bandeiras – de sua objetualidade, mas também sua performance simbólica – resulta paradoxal, pois a desconstrução da imagem da bandeira é feita em parte, sutilmente, só no registro da cor, mas em sua mudança alteram-se completamente as semânticas, desnorteando percepções adquiridas, tudo se convertendo quase numa adivinhação ou numa charada de várias dimensões (a alegoria que superpõe camadas de significações). Trata-se de um gesto com certeza iconoclasta, que erode o status quo das idolatrias correspondentes, balizadas. E graças a estas metamorfoses se produz um contágio inusitado, uma sinergia visual e sobretudo um apoio decidido pelo húmus ou fio-terra que habita debaixo de todo o repertório convencional e institucional que reportam. As desbandeiras de Julio Leite prometem outro horizonte sígnico que desloca as convenções nacional/local/global – a globalidade imaginada, como diria Néstor García Canclini – e, em consequência, o costume de nossa inércia. Faz parte de uma sinalética em xeque, em crise de representação: o regurgitado conflito nação-mundo, ainda tão vivo e ferido quanto latejante.