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março 15, 2017
“Tristes trópicos?” por Daniela Bousso e Renato De Cara
“Tristes trópicos?”
DANIELA BOUSSO e RENATO DE CARA
Da arte plumária ao Instagram, “Tristes trópicos?” traz pinturas, gravuras, esculturas, fotografias, vídeos, performances, objetos, design, literatura, bordados e bandeiras. Organizada a partir de conjuntos de imagens e artistas e não em nichos que definem espaços individuais para cada um deles, múltiplos olhares estão associados e desdobrados, em leque aberto de narrativas. E aí revelam poéticas que saem à captura daquilo que está fora da ordem, das urgências que gritam, cada dia mais, ao nosso redor.
Estão elencados os imaginários de vivências artísticas – que não são exatamente flertes com a história da arte – mas embates, que colocam a arte em uma perspectiva histórica, política e social. Esta é uma exposição que valoriza imagens, discute e revê o seu papel no mundo contemporâneo.
Mas de qual contemporaneidade estamos falando? Em que medida somos contemporâneos no Brasil hoje? Em uma mirada Latino Americana, seriam os trópicos exóticos, ainda? Ou a sua obsolescência teria lhes subtraído o exotismo que lhe restou?
No Brasil são subtrações inestimáveis. Do inesperado o embate histórico de um estupro, denominado descobrimento, insistiu nos batismos forçados, que nunca salvaram ninguém mas espantaram para longe a alma dita original.
Por curiosidade, tesão, amor ou imoralidade, sangues se misturaram e a miscigenação confirmou que todos somos um. Ladainhas, rezas, xamanismos e ex-votos fora da ordem, criados para proteger e sustentar a fé no divino e sobrenatural. Transcultura multifacetada da antropofagia moderna. Mas estas conversas já comemoram séculos.
Ouro, diamantes, açúcar, café, extermínios indígenas. Aí trouxeram os negros escravizados, cheios de crenças e ritos e iniciaram-se os recordes, dos quais o Brasil deveria envergonhar-se: o número um em tráfico negreiro! Depois veio o abandono de igrejas, fortes, mansões, tudo em ruínas; tudo afogado num “matagal de edifícios que se confunde, aos poucos, com uma paisagem de subúrbio” dizia Lévi-Strauss sobre nós em 1955.
Tristes trópicos, no lugar da varíola e da tuberculose no início do Século XX – agora veio a Zika, a Chikungunya, a volta da febre amarela, a mortalidade infantil, a prostituição, a fome, o trabalho semi-escravo. Tudo atesta uma empreitada modernista que não cessa de sucumbir ao sistema secular, ilícito, de repartição dos lucros entre poder público e empresas.
Ainda Strauss, em 1955 escrevia: “aqui, o solo foi violentado e destruído. Uma agricultura de rapina apoderou-se de uma riqueza jacente e depois foi para outro sítio, após extrair algum lucro”.
O que mudou em mais de sessenta anos? Desordem, entropia, desagregação, defasagem da informação, desintegração dos núcleos sociais familiares, ambigüidade na justiça, operação Lava-Jato, lixo eletrônico, catástrofes ambientais, Mariana 2015, o que dizer?
Oportunamente, olhando para o nosso entorno, antagonicamente distante de nós, nossos repertórios imaginários carregam introspecção e melancolia, por detrás do homem gentil e exuberante. Aqui sempre coube mais um. Em uma pré América sem fronteiras, povos se cruzaram, entre lutas e festas, antes da Europa chegar, achando que haviam encontrado alguns índios. Da floresta surgiram mitos e lendas, porque no escuro se vive o medo da surpresa.
Um ir e vir sobrepõe vários mundos em “Tristes Trópicos?”. América Latina e Brasil, comprimidos. Ao mesmo tempo as imagens expandem ação e pensamento, dilatam progressivamente uma profusão de sentidos, tirados de olhares pasmados sobre um mundo de contradições e paradoxos.
A ação é unívoca: fazer para aplacar a falta de sentido, retomar o seu fio, escancarar, revelar. Agir em meio ao pranto surdo. Não às lágrimas. Na selva de pedra ou dentro da mata virgem, ruídos de uma fatura amorosa produzem imagens e discursos alterados, em muitas línguas criadas, faladas, escritas e encantadas. Crenças e superstições ficaram latentes pelos séculos e não se dissolveram afinal, na empreitada colonizadora. Uma cultura submersa agora emerge das águas turvas que a passagem do tempo maculou.
Na visão de uma vida periférica, na várzea ou no meio do furacão urbano, a fauna e a flora são sempre reinventadas. O desconhecido tenciona e aciona a curiosidade daquele que quer viver e se (re) encontrar como indivíduo no grupo.
As imagens aqui reunidas congregam trinta e seis pessoas que pouco ou em nada se conhecem. Na reunião, surge o percurso que segue uma mesma trilha, desígnio de um caminho que possa contestar anti-valores que ainda pairam entre humanos: a mais valia, a escravidão, a prevalência do capital sobre a liberdade, a soberania sobre o outro, ausência de alteridade, refugiados.
Enquanto isto, esbarramos em uma música sambada no choro da cuíca e do berimbau, no canto das maritacas, num pica-pau perdido, num musgo que nasce do asfalto. A dança aos deuses encontra a ginga danada da molecada na pelada. Nos folguedos sincréticos e nos afazeres diários, cores, gêneros, alegria e solidão, do batuque primitivo às distorções tropicalistas.
Estereótipos, contrastes, burocracia, conflitos políticos, o paradoxo da segurança, da limpeza, das drogas, o embate entre natureza e cultura, as relações de produção e trabalho, comparecem nesta mostra com a diversidade de um fazer que vem do manufaturado ao digital. Entre obras e artistas reunidos, uma floresta de símbolos evoca diversas camadas de leituras. As imagens em convívio e confronto, em cada conjunto, atestam e dizem muito mais que palavras, não às lágrimas! E ao remixarmos tudo seguimos, em eterna transformação e batalha.