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março 10, 2017
Elegia por Gonçalo Ivo
Elegia
GONÇALO IVO
Poucos acontecimentos nos tornam tão tangíveis quanto a morte. Oculta em tudo que existe, engastada no passar das horas ou no lento arrastar do verme que fecunda e marca a terra, surge repentinamente como um vertiginoso voo de pássaro anunciando mistérios. Raramente, desejamos sua presença de aparência múltipla, sólida e fria como pedra.
Na manhã azul, um besouro é levado pelo vento incerto. E ondas do mar repetem-se de forma incessante. Precipitam-se sobre as agudas rochas do litoral. Tudo passa. Na solidão do ateliê, a mão do pintor ganha movimento e induz o pincel a macular a alvura do linho. E o que antes era matéria e espessura, transmuta-se e oscila entre o inefável e o perene.
Aprendemos muito com a morte. E aprendemos a entendê-la melhor, quando estamos diante de obras como a de Gianguido Bonfanti. Espécie de guia que se manifesta em nossa realidade física, material e psíquica, esta arte inquieta nos conduz a sendas estreitas, passagens escuras, sensações incômodas. Vivenciamos a degradação moral e física dos corpos e almas. Suas pinturas são como espelhos. Contemplamos o que em nós é inacabado e imperfeito.
Na noite escura, percebemos o ruído do jato que, em sua passagem, afasta o brilho dos astros. Tudo nos cativa e distrai. O prenúncio da aurora nos seduz. Há um sentimento frenético no movimento das coisas do mundo, e o cotidiano com sua nova luz volta a conferir cadência às nossas vidas.
Mas a arte de Gianguido Bonfanti, como maré vazante, viaja em sentido contrário numa via sem volta. Causa espanto e nos desperta do estado de inércia, torpor e letargia, como a lembrança da fúria de uma tempestade de verão. Arrasta-nos para sonhos desconexos.
Fazer do corpo e seu sofrimento a razão central de uma obra não me parece casual ou aleatório. Este assunto recorrente se evidencia e floresce desde trabalhos de meados dos anos 1970. Deparamo-nos com a crueza das imagens rudes criadas por Gianguido Bonfanti nas terríveis Doenças Tropicais.
Em seu trabalho, o corpo humano é o motivo gerador de quase todas as imagens e indagações. São figuras que estão a nos mirar impiedosamente, a nos inquerir como testemunhas da dor, da degradação, do envelhecimento e da ruína final.
O autorretrato é outra obsessão do artista. Há centenas deles: ora desenhos a bico de pena, ora pinturas a óleo em variadas palhetas – ocres, terras, negros, esverdeados, todas em misturas entrópicas – ou sua mais recente produção escultórica em argila e bronze. E mesmo quando representa o rosto de outros personagens, Gianguido Bonfanti parece retratar a si mesmo. O artista está sempre reivindicando sua singularidade e lugar neste mundo.
Há um raro vigor e até mesmo um sentimento irracional e narcisista em toda sua produção. E essa característica esquecida, deixada de lado pela prática e fabricação usual de uma arte que quer ser tutelada, igual, ansiosa em falar a linguagem da tribo e se submeter aos dogmas e normas vigentes na contemporaneidade, unicamente para ser aceita e institucionalizada, nos faz perceber quão livre e autêntico o artista Gianguido Bonfanti é em seu processo criativo. Interessa-me a repetição obsidente com que trata as figuras, seus rostos violentos, barrocos, patéticos, carcomidos por um tempo implacável.
Em uma dessas pinturas – um suposto autorretrato datado de 2011 – como num sonho desconexo, o torso de um homem emerge de uma espécie de pântano. Sua expressão imantada de força me faz pensar em uma figura mitológica, sem que eu saiba precisar a que mitologia pertenceria. Seu olhar se perde em algum ponto borrado no futuro. Em segundo plano, há uma sequência de árvores sumárias, secas e retorcidas. Em uma delas, vê-se um personagem recostado à espera da incerteza. Ao cabo, toda cena se vinca de melancolia e incômodo. Interrogo-me sobre a razão de tanta tristeza.
Em nosso último encontro, em seu ateliê arraigado entre as enseadas do Flamengo e de Botafogo, a manhã azul e limpa de fins de maio contrastava com a gravidade da pintura. Nessa ocasião, Gianguido Bonfanti me confidencia que seu foco, seu único interesse agora é por uma pintura “pura, expressiva, potente e essencial”. A meu ver, o artista passa a perseguir a simplicidade. Em seus mais recentes óleos, há um frescor semelhante às garatujas de nossa infância, quando, ainda meninos, brincávamos e rabiscávamos para imprimir no tempo sem tempo ou medida a nossa felicidade. E esta nova “caixa de lápis de cor” a sujar novamente a superfície branca da tela desvela a eterna usina da criação em seus dias de redescobertas e liberdade adormecidas.
Gonçalo Ivo
Madrid/Teresópolis,
outubro, 2016