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março 10, 2017
A condição coletiva por Juliana Gontijo
A condição coletiva
JULIANA GONTIJO
Tão turva é a época que vivemos que somos, involuntariamente, pulverizados por uma engenharia de subjetividades que alimenta uma lógica do desejo individual e competitivo. Frente a essas circunstâncias, a consciência coletiva ganha potência política. O agenciamento livre comunal, fruto da ação consciente de um grupo e guiado por um propósito compartido, pode se opor à atomização das relações sociais —e, no sentido filosófico, romper o princípio de individualidade que Arthur Schopenhauer sugeria constituir nosso véu de Maia. A consciência coletiva é, portanto, uma força disruptiva e uma resistência na dialética capitalista, mas também um desafio poético.
A indagação sobre sua própria condição de coletividade é, portanto, o ponto central desse conjunto de trabalhos do Filé de Peixe, coletivo artístico formado por Alex Topini, Fabrício Cavalcanti e Fernanda Antoun, atuante desde 2006. Essa condição se expressa em sua relação de tensão criativa com a autoria, a identidade e a instituição numa série de propostas auto-referenciais, críticas e quase insolentes. Agenciamentos coletivos e apropriações de obras já clássicas da arte conceitual conferem uma tonalidade irônica a uma tradição estética orientada pela expressividade poética do artista enquanto sujeito individual e por uma aura que gira em torno da autoria e da originalidade de um objeto-fetiche.
Nesse sistema de reiteração temática, a potência do coletivo não se opõe ao indivíduo; ou seja, as características particulares de cada membro não desaparecem, mas encontram-se presentes a cada vez em corpo, imagem ou voz, num jogo quase narcísico de ego coletivo. A autoria é, nesse jogo, um sistema dinâmico na articulação das assinaturas grupais — fatorial, expandida e tensa.Mas, assim mesmo, o “impulso coletivo” — título homônimo de uma lúdica obra da exposição — gera distorção das formas, ironiza com a própria idealização do coletivo, tornando-o commodity — em A merda do coletivo— e agencia outras coletividades — na coleção cm2.
As apropriações —dentro das quais estão incluídas a performance de Paulo Bruscky, as cadeiras de Joseph Kosuth, the boring art de John Baldessari, as latas de Piero Manzoni e os cartazes de Barbara Kruger — criam sistemas de relações e uma transitoriedade entre discursos. Isto é, a apropriação de obras existentes na história da arte, um dos dispositivos artísticos mais frequentes dos últimos anos, não é apenas uma negação da originalidade —como poderia ser o ready-made duchampiano—, mas uma forma de indagar estruturas de significado. A obra de arte, neste contexto, seria apenas um estado intermediário, uma terminação temporária incluída numa rede de elementos interligados, através da qual é possível perceber as marcas dos relatos anteriores.A obra, enquanto texto passível de tradução e conversão, ao ser apropriada, se impregna de historicidade. Pois, segundo Walter Benjamin —também “apropriado” pelo grupo, não experimentamos a história quando estamos engajados no presente dos acontecimentos, mas sim quando nos deparamos com os dejetos da cultura sendo reutilizados. Afinal, como o Filé de Peixe nos demonstra na prática de suas propostas, na era da intensa reprodutibilidade técnica e da propagação infinita de imagens, mundo só existe em função do remake e das micro-piratarias, enquanto a condição coletiva se dá na vivência do sentido da história.