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outubro 11, 2016
Pelos dias que se aproximam... por José Bernardo de Souza
Pelos dias que se aproximam...
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Caetano Veloso
Buscava escapar de um mal maior, fugir ao destino que se avizinhava sombrio, inclemente. Açodado como marinheiro de primeira viagem em águas turbulentas, ganhei o mundo sem saber ao certo onde a correnteza ladina iria me levar. Embarquei em uma viagem sem volta, disso eu sabia, movido por um ímpeto juvenil que, inexoravelmente, lançaria minha sorte em rota de colisão com a trajetória apaixonadamente urdida ao longo dos anos de sonho e juventude, resultado de minha inabalável convicção na benevolência alheia, bem como na graça divina.
Por mais que buscasse na memória o plano original que embalara meus dias vividos irresponsavelmente, resultava inócua minha batalha contra as armadilhas pouco alvissareiras que o futuro e a natureza se me impunham nesta jornada fadada ao assombro. Restava a mim correr contra o tempo, encontrar expedientes paliativos à certeza de que haveria um fim.
Ao meu redor, vestígios de uma obra inacabada, tão errática quanto ambiciosa, compunham um cenário cubista, achatado e sem perspectiva. Como se estivesse em um palco operístico, a tal realidade - com a qual tive de conviver desde o primeiro dia - ganhava contornos macabros à medida em que o som tridimensional se impunha violento, em compasso de ódio e fúria. Daí meu desejo constante de voltar a dormir, nem que fosse por um átimo, a fim de sonhar outra vez, de ganhar fôlego nas nuances de uma ficção qualquer, tão irreal quanto alvissareira.
Assim passava os dias, entre a ignorância absoluta e o trabalho duro. Com as mãos magoadas pelo combate diário contra as forças da ciência e das máquinas, sentia o formigamento de quem está prestes a desvanecer, perder a alma e a vida.
A mim, sentido algum fazia conservar os olhos abertos, beliscar-me ou molestar-me para segurar o feixe de contato com o mundo real. Mas ele se investia de uma força maior e, por fim, lograva despertar-me do sonho, da vida. O sol se levantava e punha-se a brilhar - um brilho doentio, feroz, aterrador -, obrigando-me a abrir os olhos e enfrentar o deserto que se desenhava à minha frente. Já estava em terra, por certo; não era firme como o solo do sertão - mais parecia um terreno movediço -, onde mil léguas equivalem a uma passada humana. O horizonte sempre se afastava, dando a impressão inequívoca de estar logo ali.
Miragens diurnas e trevas noturnas alternavam-se em uma batalha inglória, na qual eu mediava um confronto sem balizas ou freios capazes de contornar enseadas paradisíacas ou mesmo salinas infernais. Estava só, abandonado ao sabor do vento quente e agourento que sopra de há muito tempo nestas bandas isoladas do meu mundo que é mundo, embora apenas para mim. Onde estariam os outros? - perguntava-me, renovadamente, a cada amanhecer violento que me abraçava como um padrasto.
Foi quando dei-me conta de que estava a rondar em círculos, sempre retornando à estaca zero - mas eram tantas as distrações em meio ao percurso, que sempre parecia-me nova a paisagem a me envolver. Mas era a mesma, dei por concluir.
Flash-backs de um tempo imemorial irrompiam em meio aos sonhos, sinalizando memórias abandonadas e uma ancestralidade que perdera a conexão com este mundo - meu mundo, afinal de contas. Fechei os olhos e segui minha deriva, desconfiado de que sonhar talvez fosse melhor do que viver de costas para o futuro.
Bernardo José de Souza