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fevereiro 4, 2017
Vânia Mignone por Felipe Scovino
Vânia Mignone, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 07/02/2017 a 25/03/2017
Duas circunstâncias chamaram-me a atenção na recente produção de Vânia Mignone. Talvez elas sempre estivessem presentes mas somente agora se manifestaram de forma clarividente para mim. Uma é a atmosfera musical que percorre suas pinturas, e a outra é uma dimensão cênica, a constituição de uma história por meio de uma sequência de frames, assim mesmo, como uma linguagem fílmica. Esta última anotação, por assim dizer, não é exatamente uma novidade no seu trabalho mas penso que ela se acentuou nos últimos anos. É o caso, por exemplo, de um conjunto de pinturas que constitui claramente uma linha narrativa ao relatar, ao seu modo, o cotidiano e imediatamente o incêndio de um circo. Ou ainda polípticos que assim como quebra-cabeças congregam peças que se unem para celebrar uma história, como é o caso de uma obra sem título, de 2016, dividida em 8 partes iguais de 60 x 60 cm. Nesta, uma mulher está deitada, provavelmente desacordada, no meio de um jardim, e ao fundo um semi-arco colorido com a frase “a tempestade começa aqui” estampada logo abaixo.
Aqui está o que considero um dos pontos chaves da sua poética, isto é, a forma como um conceito narrativo é trazido à tona. Ele é tornado aparente por meio de intervalos, sombras, pistas que não elaboram claramente a imagem do que está diante de nós, vestígios que nos transformam em detetives tentando elucubrar a cena do crime. São situações rápidas, flashes de um instante, uma ação especulativa e simultaneamente concisa.
Percebam que 3 obras, todas produzidas no ano passado, que fazem parte da exposição possuem essa mesma condição concomitante de autonomia e rede. São elas: Ali ficou, O efêmero e Pássaros. Possuem uma independência ao mesmo tempo em que constroem um fio condutor – que se dá pela proximidade estético-visual dos personagens que habitam aquelas obras e pelo texto - que constitui o dado narrativo entre elas. Ademais, são imagens entrecortadas, já que tanto os pássaros quanto a mulher que habita Ali ficou não se apresentam de forma inteiriça. Estão fora do quadro. Imagens laterais, periféricas, “tortas”. Lembram-me a vagueza e a força descomunal dos espargos de Manet [i]. Algo fora do comum, inadequado, porque não se espera isso de uma pintura. Os conservadores diriam que a pintura precisa revelar o mundo, ilustrar e refletir sobre aquilo que nos cerca, dar conta do que se coloca diante de nós.
Vãnia assim como Manet, Courbet, Toulouse-Lautrec, como tantos outros, seguem um caminho um pouco distinto desse. Eles se interessam pelo índice do que é verdadeiramente humano: a sua própria essência, aquilo com que convivemos boa parte do tempo, o que é da ordem do vago, do anti-espetáculo, do comum, da rotina estafante de ter que preencher o dia e nos vermos cercados por “insignificâncias”. Nada é mais significativo, prosaico e gracioso do que os olhares perdidos sejam da mulher ou do pássaro nas pinturas de Vânia.
Por outro lado, os cortes abruptos e fotográficos que aplica à imagem, a atmosfera urbana, caótica, em certa medida sensual e delirante que permeia os cenários que constrói e o protagonismo de uma personagem feminina levam-me a um referente para o seu trabalho: Wanda Pimentel. Definitivamente não acho que se tratam de obras panfletárias ou que aludem a qualquer tipo de ideologia, simplesmente pelo fato que a protagonista em ambos os casos é uma mulher (sem cabeça, no caso de Pimentel, pois o que costumava aparecer em sua icônica série Envolvimento, realizada nas décadas de 1960 e 70, eram basicamente as pernas e o tronco). Geralmente as telas dessa fase de trabalho de Pimentel tinham a casa como cenário e a aparição de peças de vestuário feminino, chaleira, mesas, isto é, o ambiente privado de um domicílio cercados por símbolos condicionadas a serem do universo feminino. Ainda que esteja cercada por eletrodomésticos ou exerça atividades que de forma preconceituosa são associadas à prática de vida da mulher, a personagem que habita suas telas exerce uma vontade própria e libertária. Aqui reside o cinismo da artista. Associando publicidade, fotonovela e um ligeiro erotismo, a mulher em Pimentel não se limita a contemplar a cena, pois ela é parte da mesma. A artista assume uma postura fortemente crítica em relação à mulher como presa indefesa do consumo fácil. E apesar de serem tempos distintos, gosto de pensar que a mulher, em especial, no trabalho de Vânia possui essas qualidades que estão presentes na obra de Wanda: autonomia, liberdade e força. É uma mulher frágil e intensa, enigmática e franca, vibrante e tímida, destemida e reflexiva. Enfim, impossível de ser definida pois ela mesma é produto desse fluxo de contradições e sentimentos.
Voltemos a série de trabalhos em que o circo é o tema. Tudo gira em torno do mistério, do estranhamente familiar. Apesar de não sabermos exatamente a origem e o destino daqueles personagens, eles não se constituem como elementos dispersos e autônomos. As pinturas criam um enlace, uma montagem não-linear onde passado, presente e futuro perdem suas orientações. Suas pinturas de certa forma sequestram o nosso olhar, pois somos seduzidos a desvendar cada trama da história. Percebam que geralmente são closes, aproximações, nada é oferecido ao acaso e mesmo assim aos poucos. Não há desperdício nessas imagens. São concisas, misteriosas, autoexplicativas e musicais. Muito já foi escrito sobre a proximidade entre a obra de Vânia e a estética dos cartazes, ou seja, como uma certa produção da indústria da imagem faz parte do universo de referências da artista. Não discordo, mas cada vez mais “ouço” rock ao assistir as suas obras. Em alguns momentos o próprio formato das obras faz menção a um cartaz ou capa de álbum [ii].
A linguagem direta das obras induz um peso e um incômodo ao cotidiano sereno assim como possui essa velocidade instantânea e crua que descrevi há pouco. São ingredientes típicos de uma canção com poucos acordes e que fala ao mundo, sem meias palavras, retratando a sua crueza sem perder a expectativa, mesmo que ligeira, pelo otimismo. Essa minha percepção de que o seu trabalho se confunde com as letras e o ambiente do rock coincide com uma paleta nova de cores que Vânia vem explorando recentemente. Duas situações que se colocam agora à prova. Mesmo que o fundo ainda se mantenha monocromático, há uma profusão maior e mais vibrante de cores convivendo no mesmo plano, como laranja, lilás, azul e marrom [iii].
Deixo-os nesse momento em contato com essa produção instigante que tem sua força precisamente por nos ofertar mais dúvidas do que certezas. A sua potência no meio da pintura – uma forma de pensar o mundo desgastada na última década por fórmulas fáceis e frágeis - se faz por ser um eterno enigma, por nos empurrar para uma zona difícil de ser localizada. Como escrevi em outro momento sobre a obra de Vânia, são situações imprecisas pois são imagens de todo e nenhum lugar ao mesmo tempo.
i Refiro-me ao óleo sobre tela L’Asperge, de 1880.
ii Um dado importante para essa discussão é o fato de Vânia ser a responsável pela capa do álbum Jardim/Pomar, de Nando Reis, lançado em 2016.
iii Refiro-me por exemplo a duas obras denominadas como Sem título e datadas de 2016. Apenas para referência, uma é a já destacada no texto (em que está escrita a frase “A tempestade começa aqui”) e a outra possui a expressão “Na floresta que escolhi” pintada sobre sua superfície.