|
novembro 6, 2016
Eduardo Berliner: Corpo em Muda por Priscyla Gomes e Felipe Kaizer
“Achei que a minha irmã podia brotar numa árvore de músculos, com ramos de ossos a deitar flores de unhas. Milhares de unhas que talvez seguissem o pouco sol. Talvez crescessem como garras afiadas”.
Valter Hugo Mãe
Eduardo Berliner - Corpo em Muda, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 07/11/2016 a 23/12/2016
Brotar, modificar, renovar são algumas das concepções associadas à muda. O termo designa também uma planta jovem, que anseia pela ação do tempo. Essas acepções trazem consigo, entre outras coisas, a expectativa de desenvolvimento, de mudança, de frutificação.
Em A desumanização, o escritor Valter Hugo Mãe narra a história de uma menina que, diante da morte da irmã gêmea, se questiona sobre o que fora feito do seu corpo. Aquilo que é sepultado vem a equivaler à imagem do corpo que se desagrega sob a ação dos bichos da terra e ao cerne de algo fecundo. Estabelece-se a condição dúbia da menina plantada, de um corpo que é ao mesmo tempo carcaça e semente. Algo que, na ingenuidade da imaginação infantil, faz com que a menina plantada dê ramos e frutos, bem como unhas e dentes, em um processo de crescimento desordenado. Um corpo em muda do qual brotam elementos díspares ou ambíguos; onde convivem partes desconexas.
Corpos em muda reaparecem na produção recente de Eduardo Berliner, em trabalhos que trazem à tona o meio pelo qual seu universo figurativo opera hibridizações. Ao adentrarmos na exposição vemos um flautista com focinho, um cachorro com cabeça de criança, uma boneca com braçoschifres. No mesmo universo circulam dispersos elementos autônomos, sem origem ou destino certos, como membros que se ligam a um balanço ou partes que confluem para formar rostos reconstruídos. Berliner realiza um exercício em que a observação de animais em um museu de história natural e figuras humanas desconcertantes convivem com natureza mortas e aparições que nos fitam. São imagens que apostam na potência das transmutações, recombinações e decepações no espaço entre o humano e o animalesco.
Essas operações, no entanto, não se justificam apenas em termos das origens das suas imagens; não basta identificar figuras provenientes ora do exercício de observação ora de imaginação. As obras novas suscitam um peso, uma espécie de incômodo, a medida que observamos situações em que a normalidade cotidiana, o onírico e o dilaceramento convivem sem muita distinção. Ao final não se sabe o que é real ou imaginário, o que é inocente ou perigoso, se há ou não um deslocamento do motivo explícito da pintura.
As imagens de Berliner, contudo, são matéricas. São pinturas, desenhos, gravuras e aquarelas de densidades e constituições próprias, que ganham complexidade pelo acúmulo de gestos e acasos na manipulação do meio. Cada obra se impõe como um corpo na presença dos observadores. No fim, Eduardo Berliner aposta na ambiguidade do ver: de que se reconhece e não se reconhece aquilo no suporte da tela, do papel, da madeira. Um jogo permanente entre abstracionismo e figurativismo subjaz às discussões sobre seu imaginário: trata-se também de pigmento, luz, tamanho e distância.
Entre o imaginário e o matérico, esses corpos em muda dão a ver algo que está em curso na obra de Eduardo Berliner. Uma inflexão parece ter ocorrido recentemente nos permitindo conferir outras conotações às suas imagens e pensar a intensificação do acaso e da destreza na sua pintura e no seu desenho. A menina plantada de Valter Hugo Mãe ecoa na produção de Berliner não por uma referência direta ao universo do autor: encontramos em ambos o instante em que o potencial para mudança congrega os mais distintos caminhos, por onde germinam o raquítico e o gracioso, o prosaico e o brutal.