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outubro 17, 2016
Irremediavelmente por Mario Gioia
Irremediavelmente*
MARIO GIOIA
Adentrar uma sala de espelhos pode ser a sensação que se evidencia para o público quando visita And listen to the wind blow, de Diana Motta, no projeto Zip’ Up. A primeira exposição individual da artista paulistana em galerias conduz a alguns vetores poéticos da sua produção, muito particular no cenário da pintura do nosso circuito. Talvez o mais destacado seja a potência do projeto pictórico empreendido por ela. Mesmo que por meio de outras linguagens, a pintura marca vídeos, desenhos e colagens, entre outros suportes, realizados por Diana.
Outra vertente clara dentro do recorte apresentado é a autorrepresentação, que navega numa tênue linha entre o intimismo quase obsessivo do ateliê, que a faz produzir muitos trabalhos nessa linha, e um sedutor traço de exibição deles. E isso tudo criado, visto, experienciado e veiculado em tempos de overdose de selfies e outros procedimentos de narcisismo ostensivo. Nesse campo, também vêm fecundas discussões sobre o feminino hoje, em narrativas mínimas que cruzam o confessional, o intuitivo e o ativista, por exemplo.
Um dado também bastante frisado em And listen to the wind blow (verso da canção The Wind, da britânica PJ Harvey, de 1998) é o trânsito fluido da artista por uma figuração de marcante apuro e uma abstração construída com habilidade – nesta, as transparências, a sobreposição de camadas e o uso irrestrito de materiais atestam com vigor a pertinência do seu programa.
A tela Espelho é uma obra-chave na mostra, em especial por sua proximidade com o vídeo Queda. A pintura, em uma escala discreta, coloca atualmente um fértil elemento de discussão já trazido por pincéis, paletas, enquadramentos de outrora e hoje (ainda mais) por cliques, stills e frames. É visível a fonte do fotográfico como base da pintura, que retrata uma paisagem menor, banal, com uma figura feminina, árvores e um carro numa rua algo tranquila, tudo envolto por uma opacidade e uma indefinição que dá ao trabalho uma envolvente atmosfera. “A tela pintada, como enunciado e como significação, se produz e se lê a partir de um espaço que não é o da ficção, mas um espaço discursivo, um fora-de-quadro”1, escreve Jacques Aumont. “(…) Fazer uma imagem é, portanto, sempre apresentar o equivalente de um certo campo – campo visual e campo fantasmático, e os dois a um só tempo, indivisivelmente.”2
Pois bem. Espelho, então, se aproveita desses polos do ver/não ver e migra nessa condição movediça para Queda, outra peça que habilmente se liga a procedimentos audiovisuais usualmente empregados. A água que corre com fluência e ritmadamente, na perspectiva de uma câmera fixa, sintetiza com ferramentas simples o indissociável, o intrincadamente ligado. E a perspectiva algo rígida da tela caminha para uma imagem móvel, na mesma toada do pigmento a tingir a água.
O lado autorretrato de And listen… poderia se perder num exibicionismo superficial, mas o corpus da produção de Diana tem outras boas referências, como a versátil investigação sobre o feminino, entre a ostentação e a vulnerabilidade, da norte-americana Laurel Nakadate. Com vídeos, longas e fotografias, a jovem artista criada no Iowa, parte da América profunda, desestabiliza miradas mais conservadoras e fala, em especial, de identidade em relações e encontros que hoje podem ser encarados como anacrônicos. Aqui em São Paulo, Diana envereda por um tom que flerta com o naïf e o pop, por vezes obsessivamente construído, como transparece no desenho Festa na Árvore, em que Kurt Cobain convive com divindade hindu numa frondosa vegetação ao sul do Equador. “As confissões surgiram com a religiosidade individualista da Reforma cristã e os diários se firmaram no período romântico. A autoficção é apenas a forma atual de uma prática antiga”3, explica em entrevista a crítica literária Leyla Perrone-Moisés, acerca do recrudescimento desse formato e que reiteradas vezes esbarra numa raleza discursiva (o cinema também possui variados exemplos parecidos).
E, por fim, a incursão abstrata de Diana pode ter uma chave formativa, já que ela estudou nos EUA por anos, e as correntes pictóricas que circulam por lá talvez sejam menos rígidas que as vivenciadas por aqui. A nova fase da artista paulistana ecoa influências tão diversas como Joan Mitchell (1925-1992), Albert Oehlen, Dana Schutz e Eddie Peake, entre outros. A obra pouco reverente de Diana Motta, lançando mão de estratégias fragmentadas, exala frescor, como um escrito seu, Fresh, a explodir em pintura homônima recente. O cromatismo e a multiplicidade do seu olhar, portanto, têm muito a falar sobre a transitoriedade e a permanência, o desencanto e o fascínio, o parcial e o completo da visualidade contemporânea.
Mario Gioia, outubro de 2016
* O título do texto se inspira em livro homônimo, datado de 1919, de Alfonsina Storni (1892-1938), figura de proa das vanguardas literárias da Argentina
1. AUMONT, Jacques. O Olho Interminável (Cinema e Pintura). São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 114
2. AUMONT, Jacques. Op. cit., p. 114
3. GONÇALVES FILHO, Antonio. O futuro da obra literária. O Estado de S.Paulo, Caderno 2, 30.set.2016, p.C4