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setembro 19, 2016
Carta à Regina Silveira sobre Insolitus por Marcio Doctors
Carta à Regina Silveira sobre Insolitus
MARCIO DOCTORS
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Rio, 5 de agosto de 2016.
Querida Regina,
Há exatamente dez anos, em 2006, fiz uma entrevista comentada com você para a exposição "Luz zul", que fizemos no Centro Cultural Telemar, hoje Oi Futuro, em que faço a seguinte observação em referência à sua resposta para a pergunta de como você via a questão do insólito e do maravilhamento, que eu identificava na sua obra:
O insólito, o maravilhamento e a perplexidade são dimensões que o tempo fragmentado da contemporaneidade tem engolido de forma tão avassaladora que ainda talvez não tenhamos avaliado as consequências nefastas que isso representará no futuro. Esses elementos são a fonte do poético, do filosófico e da imaginação criadora da ciência. É uma dimensão sem a qual é duro viver.
Passados dez anos, sou surpreendido pelo título que você deu à sua intervenção na 21ª edição do Respiração: Insolitus. Você me fez perceber que aquela exposição de 2006 mantém um elo com esta intervenção, que foi subterraneamente se infiltrando ao longo do tempo, e manifestou-se através das conversas que tivemos e que, de alguma maneira, conduziu sua intuição / determinação primeira de transformar a mesa e as cadeiras da sala de jantar em um objeto peludo preto; um objeto insólito ao criar a obra Mutante l. Essa ideia foi tomando corpo e permitiu que eu percebesse com mais contundência o lado negro presente no conjunto de sua obra; lembro aqui dos trabalhos com sombras como contraponto poético metafórico aos trabalhos que lidam com a luz, e como identificação da ausência que todo corpo projeta para além de si.
No texto do catálogo de 2006, fiz referência a uma parábola judaica que fala dos dois fogos que escreveram as pedras da lei: o fogo negro, que desenhou as letras tal como as lemos, e o fogo branco, que criou o espaço entre as letras que nos permite lê-las. E afirmava, então, que hoje lemos o fogo negro e que chegaria o dia em que conseguiríamos ler o fogo branco e que nossa percepção da realidade mudaria integralmente. Da mesma forma penso que a sombra, no conjunto de sua obra, pode ser percebida como uma presença imaterial que se projeta para além do corpo material, como também uma presença que projeta o vazio subterrâneo desse mesmo corpo.
Para mim Insolitus pode ser lido de duas maneiras, como um paradoxo que nos desafia, tal como os fogos e a sombra: como explicitação do vazio subterrâneo de nossa sociedade atual, sem rumo, que faz aflorar as pulsões negativas de um mundo incerto e inseguro, e como um alento de esperança - um chamamento - que nos diz: surpreendam-se com o insólito! A estranheza e a perplexidade que ele desencadeia são uma chamada à esperança. Fiquem atentos e tomem cuidado com as forças insidiosas que nossas opções estão nos levando e teremos de encontrar saídas porque o incômodo e o desconforto atuais são grandes.
Longe de mim querer dar uma roupagem político-panfletária à sua intervenção, sei que essa não é e nunca foi sua intenção, ao contrário, vejo nela uma dimensão espiritual. Generosa. Mundus admirabilis é uma infestação de insetos gigantes que tomam conta da fachada da casa-museu Eva Klabin, assim como Dark swamp (nest), na Sala Renascença, em que um ovo negro de 180 cm de altura brota de um pântano de crocodilos, produzindo uma percepção de maravilhamento insólito que nos deixa perplexos e reflexivos sobre o que será gerado dali. Tudo isso tendo como fundo o som de helicópteros e mosquitos, vindo da obra Fábula ll, no alto da escada do hall principal, como referência perturbadora ao mundo dos insetos e ao filme de Francis Ford Coppola (Apocalypse now), cujas últimas palavras são: "O Horror. O Horror. O Horror". Você cria, dessa maneira, uma paisagem sonora que imanta o espaço da residência dando coerência poética à sua intervenção.
Poder conservar a reflexão neste momento de incertezas que o mundo atravessa, perdidos que estamos entre um território conhecido, mas que sabemos sem futuro, e um desejo de algo novo, mas inseguros pelo desconhecido; permitir-nos interromper o fluxo do cotidiano e a partir de sua intervenção refletir sobre nossos descaminhos é, para mim, esperança.
Esperança no sentido de que estamos numa travessia entre dois mundos, entre duas escritas, entre dois fogos e teremos de optar sem medo: apegamo-nos ao conhecido e repetimos os mesmos erros do passado ou apegamo-nos à esperança, mesmo sem saber ao certo para onde ela nos levará, e arriscamos na certeza de que não mais queremos o que aí está e que o desconhecido traçará um novo caminho. Ansiamos por uma mudança espiritual: Insolitus nos traz a crueza de uma realidade substantiva, que sua obra é capaz, ao explicitar, materializando-se na superfície do mundo, as angústias de nossa sociedade atual.
Só a arte e a filosofia são capazes de tal feito porque têm os meios espirituais para tal; não temem o desconhecido e não têm o receio de colocar o dedo na ferida. Espero que as pessoas que entrem em contato com mais essa intervenção no acervo da casa-museu Eva Klabin percebam que o que está sendo proposto desde o início pelo projeto curatorial e que você, Regina, soube expressar com tanta propriedade, ao radicalizar a ideia de intervenção da proposta original do Respiração, é a necessidade de desestabilizar para encontrar novo equilíbrio. Ao desestabilizar os códigos de uma residência, em que a tranquilidade doméstica é perturbada pelo seu imaginário, você cria uma metáfora contundente dos tempos atuais.
Querida Regina, só os artistas são capazes de antever o futuro, não que isso seja um mérito em si, já que o futuro chegará independentemente do que quer que seja, mas ao trazerem consigo essa potência conservam a única certeza possível que é a clareza da constatação. O que quero dizer com isso? É que o corpo do artista é uma espécie de veículo dos tempos se metamorfoseando, que se expressa por meio das obras de arte. A obra é mais importante do que o artista; ela é um raio X do tempo de sua atualidade; é capaz de criar pelas sensações de identificação/empatia (Worringer) uma percepção de evidência, que é um bloco de sensações (Deleuze), deixando o mistério de cada época mais transparente.
A obra Mutante II, que você criou especialmente para o Respiração, explicita o processo da arte como metamorfose do tempo, a qual estou me referindo. Através dessa obra podemos surpreender de maneira cristalina como se dá a metamorfose da forma: um carrinho de chá comum é apresentado em processo de transformação para um carrinho de chá peludo, explicitando de maneira quase animada esse processo.
A obra de arte é evidência de seu próprio tempo e cria a transparência necessária para entendermos o diagrama que compõe a sua contemporaneidade. Estou convicto de que foi isso que você conseguiu realizar. Por isso Regina, admiro a intervenção Insolitus e sua linguagem substantiva, e sou grato ao feliz encontro que tivemos em reunir trabalhos novos e outros já existentes, que reforçaram o sentido maior da sua obra e da proposta originária do Projeto Respiração, que é a de criar reflexão sobre aquilo que está estabelecido, imobilizado pelo tempo, que a própria condição de uma casa-museu impõe aos objetos e à coleção que abriga.
Com meu afeto,
Marcio
Rio, August 5, 2016
Dear Regina,
Exactly ten years ago, in 2006, I did an annotated interview with you for the "Luz Zul" exhibition we did at Centro Cultural Telemar, now Oi Futuro. In it, I made the following observation about your reply to my question about how you saw the issue of the unexpected ["insólito" in Portuguese] and wonderment I had identified in your work:
The unexpected, wonderment, and perplexity are dimensions that the fragmented time of contemporaneity has eaten up so completely that perhaps we haven't yet assessed the harmful consequences it will represent in the future. These elements are the font of poetry, philosophy, and the creative imagination of science. It's a dimension that it's hard to live without.
Ten years on, I am surprised by the title you have given to your intervention for the 21st edition of the Breathing project: Insolitus. You have made me realize that that 2006 exhibition is in some way connected to this intervention, that it has been permeating under the surface for years and has been manifested in our conversations and has in some way led to your primary insight / decision to turn the table and chairs in the dining room into a black furry object - an unexpected object - in Mutant l. This idea gradually took shape and helped me to realize more clearly the black side of your body of work. I am thinking here of the works with shadows as poetically and metaphorically offsetting the works that deal with light, identifying the void that all bodies project outside themselves.
In the text for the catalogue in 2006, I referred to a Jewish parable that speaks of the two fires that wrote the tables of the law: black fire, which drew the letters that we read, and white fire, which created the space between the letters, necessary for us to read them. And I went on to say that today we read the black fire, but that one day we would manage to read the white fire and our perception of reality would change completely. Similarly, I think that shadow in your body of work could be seen as an intangible presence that is projected beyond the material body, and also a presence that projects the subterranean void of this very body.
For me, Insolitus can be interpreted in two different ways: as a paradox that challenges us, like the fires and shadow, an expression of the subterranean void in society today, directionless, which brings forth the negative drives of an uncertain, insecure world; and as a spark of hope, a calling, which says to us: be surprised by the unexpected! The sense of uncanny and perplexity it triggers are a cry for hope. Beware and be mindful of the insidious forces that our choices are leading us to; we will have to find ways out because the feeling of unease and disquiet today is intense.
Far be it for me to give your intervention a political or pamphleteering overtone - I know it is not and has never been your intention; in fact, I see a spiritual dimension in it. A generous dimension. Mundus admirabilis is an infestation of giant insects that take over the façade of the Eva Klabin house museum like Dark Swamp (nest), in the Renaissance Room, where a black egg 180cm in height sprouts from a crocodile swamp, conjuring up a sense of unexpected wonderment that baffles us and makes us ponder what might emerge from it. All of this with the sound of helicopters and mosquitoes in the background, issuing from Fable ll, at the top of the stairs in the main hall, like a disconcerting reference to the world of insects and Francis Ford Coppola's film Apocalypse Now, and its last words, "the horror, the horror, the horror." In this way, you create a soundscape that permeates the whole house, lending your intervention poetic coherence.
Conserving our capacity to reflect at this time of uncertainty in the world, lost as we are between a familiar territory, but one which we know to be without future, and a desire for something new, yet apprehensive about the unknown; letting ourselves interrupt the flow of daily life and through your intervention reflect upon our wayward paths: this, for me, is what hope is.
Hope in the sense that we are at a crossroads between two worlds, between two writings, between two fires, and we must make our choices fearlessly: cling onto what we know and repeat the same mistakes of the past, or cling onto hope, even though we do not rightly know where it will lead us, and take a chance on the certainty that we no longer want what we have and that the unknown will open up new paths. We long for some spiritual change. Insolitus brings us the rawness of a substantive reality, which your work has the power to do, by laying bare, by materializing on the surface of the world, the anguish of our society today.
Only art and philosophy are capable of such a feat because they have the spiritual means to do so; they do not fear the unknown, nor are they afraid of pointing out issues that bother us. I hope that the people who experience this new intervention in the Eva Klabin house museum collection realize that what this curatorial project has proposed from the outset, which you, Regina, have managed to express so aptly by taking the idea of intervention contained in the original Breathing project proposition to the extreme, is the need to destabilize in order to find a new balance. Your destabilization of the codes of a residence, upsetting its domestic peace and quiet with your imaginary, creates a striking metaphor for contemporary times.
Dearest Regina, only artists are capable of seeing into the future, not that this has any merit of itself, since the future will come one way or another. But as bearers of this potential, they conserve the only certainty possible, which is clarity of perception. What do I mean by this? It is that the artist's body is a kind of vehicle for times in metamorphosis expressed through artworks. The work is more important than the artist; it is an x-ray of its time; it is capable of creating a perception of evidence, a block of sensations (Deleuze), through the senses of identification/empathy (Worringer), making the mystery of each epoch transparent.
Mutant II, which you have created especially for the Breathing project, lays bare the process of art as a metamorphosis of time, which is what I am talking about. Through this work we are surprised with crystal clarity at how the metamorphosis of form comes about: a commonplace tea trolley is presented in mid-transformation into a furry tea trolley, revealing the process in an almost cartoon-like way.
The artwork bears testament to its own time and provides the transparency we need to understand the diagram that constitutes its contemporary nature. I am convinced this is what you have managed to do. That is why, Regina, I so admire your intervention, Insolitus, and your substantive language, and I am grateful for the happy encounter we have had, putting new works alongside existing ones, reinforcing the greater meaning of your work and the original purpose of the Breathing project, which is to prompt reflections about what is established, frozen by time - precisely the state the house museum imposes on the objects and collection it harbors.
With my warmest regards,
Marcio