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setembro 11, 2016
Mão erudita, olho selvagem por Emilia Philippot
Mão erudita, olho selvagem
EMILIA PHILIPPOT
“Afinal, uma obra de arte não se realiza com as ideias, mas com as mãos.” [1]
“Braque sempre dizia que em pintura só a intenção conta. E é verdade. O que conta é o que se quer fazer, e não o que se faz.” [2]
Picasso nunca escreveu textos teóricos sobre seu trabalho. Mas expressou-se, por meio de fragmentos, sem lógica aparente, passando de uma ideia a outra. Todo o seu método criativo se coaduna com essa imagem, feita de rupturas e retornos, fulgurações e lentas progressões, caminhos que se cruzam e se sucedem. Em seu ateliê, que ele compara a uma “espécie de laboratório”, suas obras estão de fato vivas, [3] investidas de uma presença e de uma força singulares.
As obras da coleção do Musée national Picasso-Paris são peças que Picasso decidiu conservar por toda a vida, a maioria das quais “conviveu” com ele; por isso, elas possibilitam penetrar no âmago do processo criativo do artista. Maior coleção de obras do mestre no mundo, esses “Picassos de Picasso”, diretamente saídos de seus ateliês, são um testemunho excepcional e, ao mesmo tempo, uma fonte de reavivados questionamentos em torno do gênio picassiano. Desde os primeiríssimos anos de formação, durante os quais o jovem prodígio molda com habilidade cópias em gesso de mármores antigos, até as últimas etapas de sua vida, marcadas por intensa prática da gravura – entre reinvenção de técnicas e transgressão do motivo –, a coleção do museu parisiense constitui um corpus único que possibilita abordar o homem e sua obra em toda a sua complexidade.
Por isso, decidimos tirar proveito do caráter específico dessa coleção para esboçar um retrato plural do artista que questiona sua relação com a criação, entre fabricação e concepção, execução e idealização, mão e olho. Nossa abordagem, cronológica e multidisciplinar, valendo-se de uma seleção de obras importantes, de estudos e experimentações às vezes realizados colaborativamente, tem em vista fazer um apanhado da extensão do universo picassiano e recompor, por meio de fragmentos, as diferentes facetas de um dos maiores mestres da arte do século XX.
O propósito da exposição se insere, portanto, numa perspectiva singular: a do elo especial que o artista mantém com suas próprias obras. Esse elo íntimo, pessoal, que irriga o conjunto da produção picassiana, transparece de modos diferentes, a depender dos períodos: retratos íntimos da mãe do artista ou do primeiro filho, Paul, celebrações passionais da sensualidade feminina de Marie-Thérèse Walter, denúncias sem concessão dos sofrimentos provocados pelos conflitos contemporâneos, da Guerra Civil Espanhola ou da Ocupação da França pelas tropas alemãs. Seja qual for o motivo abordado, sempre aflora, para além das formas, a vivência de Picasso. O ímpeto amoroso do amante, as dúvidas do ser humano, as alegrias do pai de família, os engajamentos do cidadão: tudo se introduz em sua arte.
Esse elo íntimo, que sela indissoluvelmente vida e obra, manifesta-se não só nos objetos que Picasso escolheu para legar à posteridade, mas também nos raros textos e declarações que o artista emitiu ao longo da vida. Assim, postas em perspectiva, essas manifestações às vezes contraditórias desenham um personagem múltiplo cujo gênio se expressa por meio da conjunção de um domínio técnico excepcional, que põe as próprias mãos a serviço de projetos extremamente ambiciosos, e de uma inspiração renascente, visionária, que cultiva a selvageria de seu olhar. Já muito jovem, Picasso não se deixava reduzir àquele famoso dom de desenhar “como Rafael”, que remete tanto a uma habilidade inusitada quanto a uma profunda compreensão da pintura e da arte da representação. Fortalecido por esse legado, que ele considera de aquisição quase imediata, ele amplia seu campo de referências formais e estilísticas e inspira-se, alternadamente, na arte de seu tempo (vanguarda barcelonesa, simbolismo, pós-impressionismo, pintura de Paul Cézanne), no Mediterrâneo (antiguidade clássica, grande pintura barroca, estatuária ibérica, pintura pompeana, cerâmica de Vallauris), no mundo contemporâneo próximo (jornais, teatro, touradas, poesia, circo e saltimbancos) e distante (escultura africana, arte da Oceania, gravuras japonesas).
Assim como se apodera de tudo o que o cerca para plasmar sua obra, Picasso não se fecha numa técnica única – por mais virtuoso que ele seja em pintura –, mas passa constantemente, com facilidade e naturalidade evidentes, da pintura à escultura, do desenho à gravura, da fotografia à cerâmica, quando não está colaborando com o teatro ou o cinema! Essa aptidão para se expressar em todos os meios e transpor ensinamentos extraídos de um para outro é outra das características do gênio picassiano. Ela demonstra grande compreensão dos materiais e um gosto pela experimentação que abandona deliberadamente as categorias tradicionais dos gêneros. Verdadeiro pilar do método criativo de Picasso, esse casamento destoante entre a excelência de um know-how instruído, culto, respeitado, e a liberdade sem precedentes de um olhar que absorve tudo, sem distinção de classe ou categoria, é sem dúvida a base das grandes revoluções da história da arte no século XX. Mão erudita e olho selvagem: Picasso é, profundamente, uma coisa e outra, não hesitando, desde os anos 1930, em afirmar com galhardia sua independência artística.
Ponho em meus quadros tudo aquilo de que gosto. Azar das coisas, elas que se arranjem entre si. [4]
No entanto, essa declaração vívida, que soa como um manifesto confiante e assumido, esconde outro desafio, que Picasso exporá alguns anos depois a Roland Penrose: o de apresentar suas obras ao público. Identificando sua pintura com uma extensão de si mesmo, Picasso confidencia a seu biógrafo a violência do gesto representado pela exposição pública de seu trabalho, a dificuldade que, em certa medida, o desnudamento de sua obra implica: “Cada quadro é um frasco cheio de meu sangue. Com isso ele foi feito”. [5] Assim, seríamos tentados a entender melhor como e por que Picasso se cercava de suas obras, constituindo em vida o museu que possibilitará às futuras gerações estudar seu trabalho. Também nisso paradoxal, Picasso, mesmo dando a entender o temor ou pelo menos a apreensão do desvendamento de sua obra para o grande público, participou durante toda a vida da divulgação de seu trabalho, em especial em sua primeira retrospectiva na galeria Georges Petit, em 1932. Envolvendo-se na organização de numerosas exposições que lhe foram dedicadas por marchands e diretores de museus do mundo inteiro, ele contribuiu amplamente para a expansão de sua pintura, pondo à disposição as obras de sua coleção pessoal que hoje constituem o núcleo da coleção do Musée national Picasso-Paris.
Ademais, ele estipulou as próprias condições para a boa compreensão de sua produção e demonstrou, já em 1964, toda a atenção que dedicava à boa documentação de sua obra. É assim que Brassaï relata, em suas famosas conversas com Picasso (Conversations avec Picasso) publicadas pela Gallimard, como o artista se preocupava em preservar ao máximo a natureza e o contexto que haviam prevalecido na elaboração de suas formas:
Mudo ligeiramente de lugar os chinelos que estão pouco visíveis e me preparo para tirar a foto de meu “companheiro” quando Picasso volta. Ele dá uma olhada no que estou fazendo. “Vai ser uma foto divertida, mas não será um ‘documento’… E sabe por quê? É que você mudou meus chinelos de lugar… Eu nunca os deixo arrumados desse jeito… Essa é sua arrumação, não a minha. Ora, a maneira como um artista dispõe os objetos em torno de si é tão reveladora quanto suas obras. Gosto das suas fotos exatamente porque são verídicas… As que você fez na rua La Boétie eram como uma coleta de sangue com a qual se pode fazer a análise e o diagnóstico daquilo que eu fui naqueles instantes… Por que acha que eu dato tudo o que faço? Porque não basta conhecer as obras de um artista. É preciso saber também quando ele as fazia, por quê, como, em que circunstâncias. Quem sabe um dia existirá uma ciência que talvez venha a ser chamada ‘ciência do homem’, que procurará penetrar mais o homem através do homem-criador… Penso com frequência nessa ciência e faço questão de deixar para a posteridade a documentação mais completa possível… Por isso é que dato tudo o que faço.”
De fato, Picasso datava tudo o que fazia, e com muita precisão. Se considerarmos que a coleção de artes gráficas do museu tem a particularidade de conservar obras que são ao mesmo tempo objetos cujas funções variadas lançam novas luzes sobre a prática de Picasso e o modus operandi de sua arte, notaremos o cuidado do artista em colocar desenhos e gravuras em sequências verídicas. Não há a menor dúvida nem acasos na sucessão das folhas. Quando todas estão datadas do mesmo dia, Picasso acrescenta um número romano à data, de tal maneira que estabelece a ordem real em que apareceram e é possível reconstituir sem ambiguidade a genealogia exata de uma figura ou de um movimento. O mesmo era feito com as gravuras, cujos estados intermediários Picasso conservava com esmero, testemunhando o avanço irreversível do trabalho realizado na prancha.
Nesse aspecto, os desenhos feitos com tinta colorida sobre papel transparente para Mystère Picasso [6] – filme realizado em 1955 por Henri-Georges Clouzot – constituem um documento único do método de trabalho do mestre. Esclarecidos pelo cinema, do qual são protagonistas, eles revelam uma “progressão simultânea do desenho” que, desenvolvendo-se em todas as partes (em cima, embaixo, à direita, à esquerda), procede por destruições sucessivas de equilíbrios, por superposição e transformação de composições latentes. E podemos compreender aqui, nas palavras de Werner Spies, o papel essencial desempenhado pelo desenho em Picasso:
Se nessa obra, em que é escassa a possibilidade de se obter uma visão globalizadora, podemos discernir alguma lei que possibilite interligar os períodos mais diferentes, essa lei reside na mobilidade que Picasso impõe a seu motivo. O fundamental é “esgotar” uma forma. Quando há repetição, ela produz imperceptivelmente uma solução formal nova. Quase todas as amplificações inventadas por Picasso no âmbito da forma nasceram dessa maneira cinematograficamente “decomposta”. As obras que observamos, uma a uma, são “stills”, excertos recortados num encadeamento móvel de variações. [7]
Em outras palavras, as obras de Picasso nada mais seriam que uma pausa no continuum de um processo criativo em marcha perpétua, uma parada na imagem que demonstra toda a maestria com a qual sua mão soube encarnar as visões de seu olho ávido e indomável.
NOTAS
1 Roland Penrose, Picasso, Paris: Flammarion, 1982, p.469.
2 Hélène Parmelin, Picasso dit…, Paris: Gonthier, 1966, p.148.
3 “Ele sonhava com exposições em que as telas fossem mostradas como no ateliê. ― É lá que elas estão vivas.” Hélène Parmelin, Voyage en Picasso, Robert Laffont, 1980; Christian Bourgois, 1994, p.49.
4 Palavras de Picasso transcritas por Christian Zervos em “Conversation avec Picasso”, Cahiers d'art “Picasso: 1930-1935”, Paris, 1935, p.37.
5 Palavras de Picasso transcritas por Roland Penrose em Picasso, Paris: Flammarion, 1982, p.472.
6 O museu conserva 38 desenhos realizados durante a filmagem: números MP1983-8 a MP1983-45, com uso de canetas de feltro sobre papel jornal velino virgem, antes montados em chassis, verão 1955.
7 Werner Spies, Picasso, pastels, dessins, aquarelles, cat. exp. Kunsthalle de Tübingen, Nordrhein-Westfalen de Düsseldorf, Herscher, 1986, p.47-48.