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setembro 4, 2016
Novas Aquisições - MAPA: Um acervo em construção por Paulo Henrique Silva
Um acervo em construção
PAULO HENRIQUE SILVA
Texto sobre os artistas e as obras extraído do catálogo da mostra Novas Aquisições - MAPA
Humberto Espíndola, com a poética da bovinocultura, foi o primeiro artista do Planalto Central a se destacar no cenário da arte contemporânea brasileira. Com quase 50 anos de carreira, se reinventou por diversas vezes, vivendo várias fases: a do boi que dialogava com questões sociais do índio, como a do boi enquanto símbolo da riqueza do estado de Mato Grosso do Sul - em alguns trabalhos retratados de forma sarcástica, como ícone de poder -; a do boi naturalista, representado de forma realista, entre tantas outras. Humberto, certamente, será lembrado na História da Arte brasileira como o artista que, durante toda uma vida, pintou boi. Nos trabalhos de Espíndola, tem-se a impressão de estar diante de uma tentativa de humanização do boi. Humberto participa da mostra com o trabalho “Taurus e Europa Devastada”, realizado em 1995, que marca o período em que o artista substitui a tinta a óleo pela acrílica. A obra, inspirada em narrativas mitológicas, nos apresenta uma cena de terror e pânico, em que a princesa fenícia é estuprada pelo general Taurus. No lado direito superior do trabalho, observa-se uma figura feminina que deixa o observador cheio de dúvidas e indagações: estaria ela dando as costas para uma situação de barbárie como aquela ou estaria indo em busca de socorro? Apesar de datar de meados dos anos 90, a obra se mantém atual e é possível associar as imagens contidas nela ao terrorismo hoje presente no continente europeu.
Artista emergente do final da década de 1970, Adir Sodré tem seu trabalho pautado por uma temática regionalista, provocando discussões sobre questões relacionadas aos indígenas e à invasão da indústria do turismo em determinadas regiões do Brasil e ao consumismo desenfreado provocado por uma política capitalista. Com trabalhos que fazem a fusão de elementos da cultura regional com ícones da cena intelectual e do mundo fonográfico, Sodré, assim como seu contemporâneo Humberto Espíndola, rompeu fronteiras regionais, participando de mostras importantes no eixo Rio-São Paulo e fora do Brasil. Autodidata conhecido pela irreverência e erotismo, Adir pinta ambientes onde humanos habitam a natureza e esta, por sua vez, habita os humanos, criando uma situação de hibridismo entre habitante e habitado. Seus trabalhos celebram a vida e a natureza em uma verdadeira explosão de cores, com frutos e flores representados de forma vigorosa, cheios de vitalidade. Os elementos da fauna e da flora, em alguns trabalhos, ganham formas de órgãos reprodutores humanos, ora de forma explícita, ora subjetiva.
Para a exposição Novas Aquisições – MAPA, Adir se propôs revisitar a série “Gueixas”. O trabalho “Gueixas do Pantanal” apresenta três gueixas – ícone da cultura japonesa - em plena cena pantaneira, envolvidas por onze borboletas e uma paisagem floral que emoldura toda a extensão da obra. O artista faz referências às gravuras japonesas que influenciaram a escola impressionista e à obra “Almoço na relva”, pintada em 1863 pelo artista francês Édouard Manet.
Elder Rocha Lima Filho, goiano residente em Brasília desde 1972, frequentou entre 1978 e 1980 o ateliê do Cresça - Centro de Realização Criadora. Em 1985 ingressou na Universidade de Brasília (UnB) e licenciou-se em Artes Plásticas/Pintura. Em 1993, após ter feito mestrado na Inglaterra, tornou-se professor do Departamento de Artes Visuais da UnB, onde se tornou um dos principais referenciais da pintura produzida, e em Brasília fez escola como professor do Instituto de Arte da UnB, influenciando um número expressivo de artistas que, hoje, se apresentam no circuito institucional e comercial da arte contemporânea. Apesar de uma trajetória marcada por trabalhos que apresentam um hibridismo entre ações do território do desenho e da pintura, sempre pensou o seu trabalho como pintura, mesmo quando faz instalações, pois coloca em foco a discussão do plano, da pintura expandida. Para Elder, tudo que habita a superfície de uma tela é pintura, mesmo quando se relaciona de forma direta com aspectos técnicos e estéticos do desenho. Portanto, a denominação pintura é meramente uma questão geográfica.
A obra doada por Rocha para ser incorporada ao acervo do MAPA é uma pintura da série “Justaposição Polar”, do ano de 2015. O trabalho, com apurada técnica, nos apresenta a figura de um homem de chapéu, que à primeira vista até lembra Santos Dumont, o que é normal quando se está diante de uma pintura do artista, pois Elder se apropria de imagens geralmente antigas, retiradas de livros literários, escolares e revistas, portanto, muitas vezes já vistas por nós. As imagens deformadas e justapostas nos polos opostos da tela funcionam como um dispositivo da memória coletiva, elementos condutores e facilitadores para um mergulho na intimidade da obra.
Marcelo Solá é o artista goiano da geração emergente do final dos anos 80 e início da década de 1990 cuja produção obteve maior projeção no cenário nacional. Nasceu em 1971, em Goiânia, cidade em que vive e trabalha atualmente. Com trabalhos intimistas, que utilizavam a escrita como processo de construção dos desenhos, Solá foi rapidamente absorvido pelo circuito institucional, pela crítica especializada e consequentemente pelo mercado comercial. Participou de exposições em importantes instituições e conquistou vários prêmios. Entre eles se destacam a Bolsa de Apoio à Pesquisa e Criação Artística, da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro e, por duas vezes consecutivas, o Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea da Funarte.
Em 2002, Marcelo participa da 25ª Bienal de São Paulo, fato que marca, definitivamente, sua ascensão ao patamar dos principais artistas contemporâneos do Brasil. Sua instalação, composta por um imenso avião, construído com carrinhos de metal e utilizado para realizar o transporte de caixões em cemitérios, e pelos painéis em preto e branco, criam um ambiente, carregado, sombrio e cheio de inquietações conceituais.
As obras exibidas na exposição mostram que elementos como palavras, frases, manchas, ora opacas, ora transparentes, que sempre estiveram nos trabalhos do artista, continuam presentes, porém agora grafadas com uma gama pictórica extensa. As cores, muitas delas fluorescentes, se contrapõem ou se alinham ao preto, abundantemente usado por Solá. Os trabalhos feitos com lápis, pastéis macios e tinta acrílica, criam narrativas poéticas entre ícones e alegorias que abordam questões sobre política, sexualidade, comportamento, arquitetura e história da arte.
Com carreira iniciada durante a década de 1980, Luiz Mauro estabeleceu-se como um expoente da pintura goiana. Artista pesquisador, após vários anos dedicados à pintura, Luiz começa, no início dos anos 2000, a fazer desenhos que retomavam a figura da cama - presente nas pinturas dos anos 80 –, associando-a a novos ícones impregnados de memórias de um mundo sombrio e, muitas vezes, de aspecto depressivo. O desenho sempre esteve presente nas anotações do processo de construção das pinturas, porém, só por volta do ano de 2007, passou a ser utilizado como a principal mídia trabalhada pelo artista. Em 2009, com dedicação exclusiva ao desenho, associa o uso do nanquim com a tinta óleo sobre papel. Os trabalhos mantêm aspectos muito próprios da pintura, como a densidade da matéria e da textura.
Luiz Mauro irá participar da exposição com trabalhos da série “Pinturas como Fotografias”, iniciada em 2012, que tem como tema o ateliê. São obras que representam os estúdios de produção de artistas importantes de vários períodos da História da Arte. Usando imagens de segunda geração, no caso, fotografias retiradas de sites, revistas, livros de arte e outras fontes, Luiz não busca fazer os trabalhos com a perspectiva documental, considerando que essa função já foi exercida pelas fotografias e gravuras que ele usou como referencial para produção das obras.
Os trabalhos apresentados na mostra são ateliês dos escultores - Georg Baselitz e Anish Kapoor, artistas de gerações diferentes, ambos ainda vivos. São desenhos carregados de sentimentos e poesia, feitos com várias camadas de nanquim e tinta óleo, levando até três meses de trabalho para serem concluídos. Os trabalhos conduzem o observador a visitar espaços nunca habitados por ele, proporcionando um mergulho em questões que relacionam arquivos imagéticos, arquitetura e fotografia.
Um dos artistas mais emblemáticos de Goiás, Pitágoras Lopes desenvolveu uma trajetória sólida e comprometida com o ideário neoexpressionista e romântico. Artista emergente do final da década de 1980 e início dos anos 90, participou de importantes exposições no Brasil e no exterior. Foi premiado em vários salões e participou da 29ª e 34ª edição do Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, um dos eventos mais representativos do circuito institucional do país.
Pitágoras é movido por uma força externa que o impulsiona a produzir de forma compulsiva e incessante. Sua produção é influenciada por todos os tipos de mídia: TV, gibis, revistas, jornais cinema, qualquer tipo de informação advinda do mundo contemporâneo. Seu processo criativo pautado na relação de tensão existente entre seu corpo e o material utilizado como suporte para produção das obras, telas, papelão, pedaços de madeira e encartes do mundo da moda, resultam em pinturas que trazem narrativas poéticas de um mundo visto de forma quase surreal, onde personagens em meio a um universo caótico dialogam com cenas banais do dia a dia.
Nesta mostra Pitágoras irá apresentar um trabalho de sua nova série, “Sem Título”, que, ao contrário de trabalhos em preto e branco, de desenhos e pinturas com imagens distorcidas e fantasiosas, de um artista contemporâneo que lida com as dores, frustrações e solidão do mundo atual, apresenta uma obra repleta de insetos coloridos. O trabalho surge do interesse do artista de se afastar e ver com certo distanciamento sua produção mais intensa e neoexpressionista. Com os mesmos traços fortes, gestos rápidos e fluidos de sempre, Lopes considera a obra doada ao acervo do MAPA um insight específico dentro de sua trajetória.
Divino Sobral é um dos artistas mais versáteis desta mostra. Além de artista visual, atua como curador e crítico de arte. Autodidata, teve sua formação de maneira solitária, valendo-se de suas pesquisas práticas em seu ateliê e suas investigações teóricas em sua biblioteca. Após ter sido absorvido enquanto artista pelo meio institucional, participando de importantes mostras e recebendo prêmios nas principais instituições do país, seu interesse pelas áreas da estética, história e crítica da arte o levou a assumir outras funções no circuito. Atualmente, Sobral está entre os principais teóricos e críticos de arte do Centro-Oeste, participa de comissões de seleção e premiação de importantes eventos do setor e escreve textos críticos para publicações de artistas renomados.
Sobral, ao longo de sua carreira como artista, vem pesquisando e investigando a relação da memória individual e coletiva com o tempo em que elas são moduladas. Para produção dos trabalhos lança mão de diversos materiais como papel, ferro, fios de cobre, cabelo humano, sabão artesanal, tecido, bordados, entre outros. O uso de todos esses materiais e suportes resultou, em mais de duas décadas, em desenhos, pinturas, objetos, esculturas, fotografias, instalações e intervenções na paisagem.
Os trabalhos escolhidos para participar da mostra são um recorte da obra intitulada “Recordações de uma paisagem não vista”. O trabalho parte da ideia de apresentar um lugar a partir de memórias e referências culturais de um lugar onde Sobral nunca estivera antes, no caso, o estado do Ceará. Serão apresentadas sete fronhas de um conjunto de quarenta fronhas oxidadas e bordadas digitalmente. Os desenhos feitos artesanalmente se relacionam de forma quase sempre metafórica com textos de depoimentos, dados biográficos e nomes de pessoas, personagens importantes da história cearense. Divino imprime nas fronhas referências aos expedicionários, aos artistas viajantes, como no desenho que representa as malas de viagem do artista Leonilson. Os trabalhos, sempre expostos em pequenos ou grandes conjuntos, têm a intenção de proporcionar ao público a sensação de estar diante de um grande livro.
O goiano Elyeser Szturm, nascido em Goiânia em 1958, há mais de duas décadas residindo em Brasília, fez doutorado em Artes Visuais na Université de Paris VIII, entre 1989 e 1994. Está no circuito profissional desde 1974, participando de importantes exposições no Brasil e exterior. Entre os prêmios conquistados, se destacam Prêmio Funarte, em 1998; Salão da Bahia, em 2000; Bienal 50 Anos Brasília e Faxinal das Artes, em 2002. Szturm por ter consolidado sua carreira no Distrito Federal, assim como outros artistas goianos, tem o seu trabalho mais conhecido em outros centros do que em Goiás.
Transitando por diversas linguagens, Elyeser usa desde suportes tradicionais como o papel até instalações de alta complexidade. Suas pesquisas se estendem por temáticas que envolvem o espaço e a paisagem, tendo como foco a construção de narrativas poéticas contemporâneas da imagem.
Szturm participa da exposição com trabalhos feitos a partir de monotipias em silicone, técnica desenvolvida nos meados dos anos 90 que usa silicone para extrair ou subtrair das superfícies elementos que a compõem, criando uma espécie de pintura em que não se utiliza tinta e nem pincel. As obras intervêm, retiram ou se apropriam de elementos da natureza e da cultura do povo goiano, levando para o espaço institucional, galerias e museus, códigos pertencentes ao universo popular, que ganham novos significados ao serem fruídos pelos visitantes. As obras expostas foram extraídas da arquitetura colonial da histórica Pirenópolis, no Beco do Mulungu, local da cidade que liga duas ruas importantes, a dos Pirineus e Aurora.
Gê Orthof, natural de Petrópolis, Rio de janeiro, mudou-se para Brasília no início da primeira infância, onde vive até hoje. Gê é professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, pós-doutor pela School of the Museum of Fine Arts, Boston, doutor e mestre em Artes Visuais pela Columbia University, Nova Iorque, e Fulbright Scholar na School of Visual Arts, Nova Iorque. Artista multimídia, transita livremente entre instalação, performance, desenho, fotografia e vídeo, muitas vezes realizando fusões entre essas modalidades. Sua produção é o resultado de manobras que operam conceitos contemporâneos, verdadeiros códigos abertos que permitem ao público ler seus trabalhos a partir de suas vivências pessoais. Atualmente é uma das principais referências para a jovem arte brasiliense.
Ao olhar para os desenhos expostos nessa mostra, o espectador tem a sensação de estar diante de uma pequena instalação, algo natural se tratando de um trabalho de Gê. Ao contrário de muitos artistas que lançam mão de suportes convencionais para produção de desenho, ele abusa dos desdobramentos conceituais do desenho expandido. A delicadeza dos suportes e dos materiais utilizados na produção dos trabalhos resulta em desenhos extremamente leves, frágeis, mas carregados de conceitos.
Artista mais jovem da mostra, Rodrigo Godá iniciou sua trajetória em meados da década de 1990, trabalhando com manobras e códigos oriundos da pintura oitentista. Já nos anos 2000, Godá insere em sua pesquisa pictórica linhas que, sistematizadas por uma sequência repetitiva, delimitam formas como templos, aquedutos e pontes. Paralelamente às experiências pictóricas, inicia uma série de desenhos, onde as superfícies dos papéis são tomadas por formas surreais, com aspectos lúdicos.
Influenciado na infância e na juventude pelas histórias em quadrinhos, desenhos animados, grafite e, mais recentemente, pela cultura popular, explora ao limite a representação e apresentação iconográfica em seus trabalhos.
Podemos observar nos trabalhos da Série “Sem Título”, exibidos na exposição, a recorrente pesquisa do artista sobre a relação de um mundo fantasioso com um mundo humano, real, cheio de imperfeições. Com traços delicados e precisos, Godá apresenta uma pintura que, à primeira vista, nos leva por alguns instantes a voltar a nosso tempo de infância, reativando em nossas memórias o cheiro, o gosto e o som de nossas histórias mais tenras. Porém, ao colocar em meio à fauna e a flora engenhocas futuristas, marinettianas, cria uma relação que vai além da acomodação estética, instigando o observador a perceber questões críticas e políticas em suas obras.
O artista Carlos Sena Passos, natural de Mairi, cidade do interior da Bahia, mudou-se para Goiânia no ano de 1973, onde viveu e trabalhou até seu falecimento em 16 de maio de 2015. Construiu uma trajetória sólida como artista, professor universitário, articulador e gestor cultural, incentivador e orientador de jovens artistas. Com certeza, foi responsável pela formação de algumas gerações de artistas, tanto pela sua produção quanto pela generosidade que tinha em ensinar. Não poderia deixar de registrar que ele, com seu jeito frágil e educado, mas sempre muito firme em seus posicionamentos, foi extremamente importante na minha formação, no que penso e principalmente na minha escolha em ser um profissional da arte contemporânea.
O trabalho doado ao acervo do Museu pertence ao período iniciado no final dos anos 90, momento em que o artista começou a utilizar latinhas de alumínio, de refrigerante e de cerveja. O uso desses materiais tornou-se, ao longo da década seguinte, objeto de sua pesquisa, se desdobrando em esculturas, objetos, instalações e até mesmo em pinturas. O trabalho intitulado “Metal Sculpture” é uma instalação composta por 11 peças, em que as latinhas são acopladas umas sobre as outras, e com algumas delas atingindo até dois metros de altura. Os objetos são dispostos um ao lado do outro, de forma alternada, em cima de um praticável, inclinados sobre a parede. As imagens de diversos rótulos e marcas são transfiguradas por uma trama feita de fitas de latinhas, gerando objetos híbridos de uma semântica que remete a uma sociedade consumista e capitalista.
Paulo Henrique Silva, curador da mostra