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agosto 17, 2016
No meio-fio por Mario Gioia
No meio-fio
MARIO GIOIA
Topofilias, de Claudia Hamerski, agrupa questões muito evidentes sobre as potencialidades do desenho, não visto apenas como a ação do grafite sobre o papel, mas sim também como projeto e ideia, um desdobrar pelo espaço, uma presença de matéria e uma trajetória por meios variados como o tridimensional, o fotográfico, o instalativo e o performático. Também se manifesta em ligações com embates típicos da contemporaneidade, como a necessidade de formar coleções/inventários/arquivos, a escolha deliberada de um tom menor, mais low tech, quase reativo à excessiva virtualização de quase tudo que podemos imaginar, e a centralidade da deriva urbana como prática decisiva e catalisadora de um pensamento visual.
A exposição individual da artista gaúcha no Margs (Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli) pode chamar a atenção do público, inicialmente, pelo apuro técnico empreendido em especial nos desenhos de grande escala. Faz-se necessário, então, explicar mais sobre o processo de Claudia. Por entre locais familiares e próximos de casa e do trabalho, a artista planeja e vivencia rotas, onde caminha com objetivos claros. Equipada com uma máquina fotográfica de boa qualidade, registra vegetações esparsas, plantas de pequeno porte e cantos verdes e úmidos nos quais o passante comum, talvez em relação de solipsismo com seu dispositivo eletrônico próprio, nunca perceba. Em uma ação que lembra street photography, faz o clique fotográfico, em geral abaixada e com agilidade, o recorte verde que se tornará base de outro procedimento.
Desta vez no ateliê, ela amplia a imagem coletada que agora virará uma peça gráfica de certo virtuosismo, em um trabalho demorado e minucioso. No labor do ateliê, será de determinação tíbia a fidelidade estrita do que foi ‘capturado’ pelas lentes do equipamento. Aspectos serão maximizados, detalhes serão ressaltados, haverá tanto adendos quanto dados extirpados, e a experiência por meio de elementos do próprio desenho será enfatizada. Entretanto, o conjunto que sai do ateliê novamente se relaciona com a cidade e o lócus onde será exibido, já que algumas das obras são originárias das cercanias do local expositivo e o título dos desenhos revelará quais são esses logradouros. Assim, a artista constroi elos de natureza mais de site specific, traçando conexões com a cidade, a arquitetura e o lugar da arte.
Em Topofilias, Claudia também apresenta ‘desenhos-objetos’. Um deles é uma espécie de paisagem em que os contornos dos lápis usados nos desenhos, dispostos um ao lado do outro, constituem quase que um skyline metropolitano em miniatura, ressaltando as ferramentas de um trabalho físico e serial. Na outra peça, uma caixa de vidro agrega e reúne, sem muita ordem, as lascas descartadas após a ação do estilete por sobre o lápis. Vistas como um díptico, tem sentidos complementares – a primeira alude a um esforço de construção, enquanto a segunda atesta a potência do vestigial. “O artista do mundo precário considera o meio urbano como um invólucro do qual há que se desprender fragmentos” [1], escreve Bourriaud.
Duas séries hoje apresentadas também convergem para tal leitura. Em Improvisações (2016), uma composição algo musical de pequenos desenhos que se espraiam por uma das paredes é uma organização ritmada de acidentes, uma partitura gráfica que elogia o permeável. Já Notas de Rodapé (2016), ainda mais liliputianas – 7 cm x 5 cm e 5 cm x 7 cm –, não deixam de lembrar os pormenores, o cuidado e um certo pendor obsessivo na produção empreendidos por artistas-viajantes europeus. Eles não se exauriram em registrar, com fascínio, a riqueza verdejante do Novo Mundo, criando um legado ainda a gerar discussões sobre o científico e o exótico, por exemplo.
“Sinto-me mais coletora que colecionadora”, diz Claudia. Pois em seu movimento de extrair, ressignificar e oferecer imagens, em um mundo de circulação maximizada delas, e construindo diariamente um outro olhar sobre o corriqueiro, o rasteiro e o que foge dos fluxos predominantes, a artista enraíza abordagens que cruzam o banal e as tão sedimentadas camadas da história da arte. Paradigmático nesse sentido é a proximidade entre Rua Caldas Júnior, 120 (2016) e desenho, em aquarela e bico de pena, de Albrecht Dürer (1471-1528), datado de 1503. Nessa ponte algo improvável e desencaixada entre Nuremberg e Porto Alegre, Claudia realça a abertura de sua obra para o imaginário, o onírico e o fantástico. Contudo, nestes tempos friccionados, tal âmbito ganha nova roupagem. “O imaginário é uma noção muito complicada, porque está no entrecruzamento dos dois pares. O imaginário não é o irreal, mas a indiscernibilidade entre o real e o irreal. Os dois termos não se correspondem, eles permanecem distintos, mas não cessam de trocar sua distinção” [2], declara Deleuze. Assim, por meio de uma senda algo erodida e que pode mudar a todo instante, Claudia Hamerski exibe sua poética mínima e afetiva, características essenciais nesses dias raivosos e cheios de ansiedade.
Mario Gioia, julho de 2016
1. BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. São Paulo, Martins Fontes, 2011, p. 96
2. DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). São Paulo, 34, 2010, p. 89
Mario Gioia (São Paulo, 1974), curador independente, é graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes desde 2011, instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Luz Vermelha (2015), de Fabio Flaks, Black Market (2012), de Paulo Almeida, e A Riscar (2011), de Daniela Seixas. É crítico convidado desde 2014 do Programa de Exposições do CCSP (Centro Cultural São Paulo) e fez, na mesma instituição, parte do grupo de críticos do Programa de Fotografia 2012. Em 2015, no CCSP, fez a curadoria de Ter lugar para ser, coletiva com 12 artistas sobre as relações entre arquitetura e artes visuais. Em 2016, coordena pelo sexto ano o projeto Zip'Up, na Zipper Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria.