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junho 29, 2016
Elogio à opacidade por Daniela Name
Elogio à opacidade
DANIELA NAME
Fernando Gonçalves - Ruídos para ver, CCJF, Rio de Janeiro, RJ - 29/06/2016 a 14/08/2016
A epidemia de “treva branca” imaginada por Saramago em Ensaio sobre a cegueira pode ser um bom ponto de partida para percorrer a exposição de Fernando Gonçalves. Vitrines, espelhos d´água, janelas e outras situações geralmente encaradas como superfícies reflexivas, são recorrentes nesse conjunto de trabalhos. No entanto, mais do que se apresentarem como elementos de duplicação e transparência, elas são capturadas pelo olhar do artista como uma espécie de neblina que envolve a imagem, mergulhando-a na opacidade e na indeterminação.
O véu opaco com que Gonçalves cobre todas as coisas traz à tona uma discussão sobre a fotografia. Nascida do escuro, como de resto quase tudo o que existe, a escrita da luz ultrapassou seus dispositivos como experiências científicas e se inventou como linguagem a partir de seu poder de coagulação dos mortos. Houve tempos em que os espelhos eram cobertos em períodos de luto, porque se acreditava em sua capacidade de trazer de volta aqueles que haviam partido; houve e há culturas que acreditam que a fotografia é uma forma de roubar a alma dos viventes. Ambas as crenças abrigam a impressão de que a imagem é, a um só tempo, morto e mortalha. Uma múmia, vestígio semicorpóreo daquilo que foi visto por quem criou a imagem.
É curioso que muitas vezes o artista opte ou sugira a água nas imagens que escolha criar. Ela pode ter existido de fato, no momento em que a foto foi feita, ou apenas conferir uma atmosfera submarina – fluida, indeterminada – àquilo que ficcionamos ver. Sim, dos despojos dessa múmia-mortalha podemos fazer a gênese de quantos universos forem sugeridos pela memória e pela imaginação,reconheçamos ou não alguns dos elementos presentes naquilo que foi fotografado.
É assim, por exemplo, com o “grampo” vermelho do Masp. Marca fortíssima da arquitetura de Lina Bo Bardi e da paisagem paulistana, ele aparece embaralhado e fora de contexto: deixa de flutuar no ar, força bailarina, para lamber o chão, quase pincelada no labirinto estilhaçado proposto por esses trabalhos. Ocorre algo semelhante nas três imagens que mostram um o manto monumental que protege uma área pública em reforma. Suspeitamos a localização das ruas do Rio pelas pedras portuguesas que se insinuam em um canto da imagem, mas elas são irrelevantes diante daquilo que não se vê. A cobertura translúcida transforma o volume que esta embaixo dela em uma espécie de rocha. Simultaneamente, a maleabilidade e o brilho desta tela metálica erodem e esfarelam a rocha, como a água da chuva que vai destruindo vagarosamente as montanhas, lavando-as, infiltrando-as.
“Vagarosamente”. Usei esse advérbio e alguns outros antes dele. E, se estou aqui a escrever, é preciso que eu esteja atenta às palavras escritas. O vagar e o processo implícito no sufixo “mente” são de fato importantes para compreender essa conversa com outro mundo proposta por Gonçalves. Um mundo que é lá e cá, assombroso e assombrado. Acima de tudo um mundo de vir-a-ser, que não nasce pronto.
Uma das virtudes em friccionar as imagens em sua opacidade reside no fato de que o que opaco não se entrega e não se enxerga fácil. Optar pela opacidade é abraçar a metáfora, abrir veredas, trilhas marginais. Opção mais do que necessária em um meio de arte que apresenta obras que se transformaram em soluções. Elas são transparentes e prêt-à-porter, perseguem a aderência a modelos repetidos à exaustão.
“Só num mundo de cegos as coisas serão o que realmente são”, escreve Saramago no mesmo Ensaio sobre a cegueira. Gonçalves escolhe navegar pelo mar infinito de imagens, sempre revirado pela luz de holofotes e telas eletrônicas, pelo lado mais fundo. De seu olhar submerso vêm mensagens do que é entrevisto ou invisível, e ainda assim não deixa de estar à vista.