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maio 24, 2016
Alexandre Mazza - No Deserto, o oásis somos nós por Bernardo Mosqueira
(ao meu amor)
Mesmo o início surgiu da linguagem. Houve sempre ação, criação e transformação – simultaneamente. Ainda antes do tempo, já havia tudo em potência e como chance de sentido. A Universo já nasceu da vagina dessa mulher-linguagem enquanto paria outra versão de si mesma, parturiente de uma nova Universo que seguiu, então, o fluxo dessa constante gestação da Universo, dando à luz a cornucópia de cornucópias. O que existe que nos utiliza para criar sentido? Ao que as existências se determinam? Mesmo com essa distância que, em segredo, me corrói de saudade, está tudo bem no outro lado, onde brilhava aquele ponto no Atlântico Sul? Ainda brilha? Brilhará? Inúmeros verões antes da época de nossas bisavós, despertou Ogum, que criaria os instrumentos de metal para a guerra e a agricultura. Foi ele quem ajudou os sumérios a criarem o arado que seria capaz de cavar linhas na terra que os romanos viriam a chamar de “lira”. A palavra “delírio” derivou de uma expressão em latim para quando o movimento do arado saía do sulco retilíneo e criava curvas inesperadas no solo. Delirar tem, portanto, uma relação direta com semear no desvio, florescer na diferença.
Numa tarde do ano passado, entre os carros parados na Autoestrada Lagoa-Barra, revelou-se para Alexandre Mazza a imagem de uma linda entidade penosa, meio pássaro, meio anjo, meio mulher, mas que definitivamente não poderia ser definida por meias comparações. São muitos os tipos de desertos (rochosos, arenosos, nevados, habitados, extraterrestres, afetivos, metafóricos, encarnados, Samarcos etc.), mas a aparição da rodovia escolheu se mostrar flutuando sobre o solo de um deserto plano e espelhado. Antes de logo desaparecer, apontou, porém, ao artista o caminho para reencontrá-la. Poucos meses depois, uma equipe de 7 pessoas começaria a incursão de 20 dias por desertos latino-americanos com a missão de encontrá-la para investigar a relação entre vida e mistério, desejo e movimento.
Não foi fácil estar no deserto. Por um momento, acreditamos que onde não havia água, não poderia haver vida, lucidez, fertilidade ou vaidade. É bem verdade que passamos dias sem ver nem insetos. Por um momento, estivemos no lugar mais seco do planeta; em outro, estávamos a mais de 5 mil metros de altura, sem ar. No caminho, passamos por vales encantados, cruzamentos entre Shangri-la, El Dorado e Neverland; fomos de 45ºC para o centro de uma nevasca em uma hora; estivemos entre o espelho d’água salgada e o espelho de Oxum, que é a Lua; fugimos dos trabalhadores sem-terra que cercaram a cidadela e atiravam fogos-de-artifício contra nós; dirigimos horas no escuro dentro de uma nuvem de areia; visitamos o Pico da Loucura, subimos no mastro do perigo, batemos cabeça a Xangô no pé do poderoso Vulcão Licancabur; pensamos que talvez não voltaríamos nem ao Rio, nem ao normal. Porém, juntos, pudemos entender que no deserto o oásis somos nós: feitos 70% por água, carregamos conosco tudo o que nela pode haver.
Numa tarde, à sombra de uma duna, percebemos que uma das integrantes de nossa equipe, a Falta, ardia em febre. A temperatura do corpo da Falta aumentou tanto que ela queimou à frente de nossos olhos. De suas cinzas, 3 ovos de pedra cintilante surgiram. Para que eles não dormissem, tocamos sinos e lambemos um holograma de alta tecnologia que reproduzia os poderes da Universo. Quando caímos no sono, o tempo fez seu papel e a Aurora chocou os ovos para que nascesse a entidade que procurávamos.
Logo percebemos que a entidade definia seus movimentos se afastando e se aproximando de sinais que correspondiam a seus medos e desejos respectivamente. Compreendemos que, mesmo visível e semelhante a nós nesse aspecto, ela habitava outra Universo. Seguimo-la, e as pegadas que geramos na parte arenosa do deserto só serão apagadas na próxima chuva. Parece que já faz 8 anos desde a última precipitação. Numa região rochosa e frágil do deserto, demoraram alguns milhares de anos para desenvolver suas finas superfícies sólidas sobre a areia. Se mesmo o passo cuidadoso é capaz de destruir milhares de anos de trabalho da Universo, passamos a refletir sobre o que motiva cada ação. Quando a transgressão é uma escolha e não uma escravidão, torna-se mais dono dos próprios questionamentos, compreende-se melhor o risco em que se coloca o meio que nos cerca. No deserto, perseguíamos as nossas perguntas (E a vida? E a vida o que é? Diga lá, ‘mano’.), deixamos respostas voarem com o vento, fomos miragens para as montanhas descrentes, amorosamente oferecemos um ramo de angélicas perfumadas na encruzilhada da Calle Pachamama. É bom lembrar que Fé é definido como a coragem de acreditar num mistério, e que mistério é a substância do inexplicado. Existe vida enquanto existir atração pelo mistério, que tem destino fatal semelhante ao desejo: com a imperativa morte à frente, com uma fonte inesgotável por trás.
Num dia, acordamos e não encontramos mais a entidade. Conosco, estava novamente a Falta, nos acompanhando e completando nosso grupo. Quando finalmente, conseguiu voltar ao Rio de Janeiro, Alexandre Mazza trouxe consigo uma série de trabalhos, traduções visuais das falas enigmáticas do deserto e da entidade que rastreamos por aquelas semanas. São peças que investigam, relacionam e reverenciam as ideias de revelação, ciclo, tempo, transformação, desejo, vida e mistério. Em cada trabalho, os ecos de muitas perguntas, os reflexos de muitos movimentos e a certeza de que, se é de Luz, deixa brilhar.