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março 31, 2016
Arte e vida no movimento das águas por Miguel Chaia
Arte e vida no movimento das águas
MIGUEL CHAIA
Sandra Cinto - Acaso e Necessidade, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 07/03/2016 a 02/04/2016
Ela dá voltas em torno das suas técnicas, suportes, narrativas, esgarça as fronteiras entre pintura e desenho e, ainda, amplifica seu trabalho ao pensar arquitetonicamente, visando estabelecer diálogos com o espaço expositivo e, mesmo historicamente, quando incorpora ao trabalho os acontecimentos ocorridos no lugar geográfico da exposição.
MOVIMENTO LÍQUIDO
Agora, março de 2016, uma experimentação ocorre: a água e as ondas não são apenas metáforas nos trabalhos de Sandra Cinto, não apenas signos visuais – agora, a água, enquanto elemento natural, é incorporado pela artista e, também, faz-se presente nas suas qualidades físicas e na potência do seu movimento segundo a lei da gravidade. A água é veículo de pigmentos, ela mancha o suporte e deixa-se escorrer para formatar amplos planos azuis.
A mostra Acaso e necessidade permite recuperar uma série de questões já adiantadas em períodos anteriores, relativas à experimentação de linguagem e à reflexão existencial.
Dois fatos podem ser lembrados para fundamentar uma nova perspectiva de trabalho da artista. O primeiro deles é um trabalho que utiliza uma banheira, na qual Sandra Cinto desenhou e jogou água até certo nível no interior do objeto (de 1999, mostrado na Galeria Tanya Bonakdar, em Nova York). Depois dele, a artista produziu instalações com uma pia com a torneira pingando, “Abrigo impossível”, 1999, na Bienal do Mercosul.
O segundo fato marcante, para se chegar à atual exposição, foi uma temporada experimentada pela artista, no final de 2015, no Japão, onde manipulou tecidos e papéis embebidos em água e pigmentos. O japonismo volta agora enquanto vivência cotidiana com a cultura do país.
Duas grandes pinturas, 2016, de 300 cm por 750 cm, trazem a representação de um lençol de água azul que se esparrama por quase toda a área da tela, como se fosse uma cachoeira suave, formada pela queda do líquido com pigmento. Por traz dessa caída da água, vestígios de montanhas e picos elevados de rochas. A mancha azul, feita pela água para fazer a representação de si, sofre a gravidade e deixa-se tombar. Por sua vez, as rochas da terra se elevam num sentido contrário ao da gravidade. Duas forças se contrapõem, duas direções opostas estabelecem o ritmo de cada tela. O controle construtivo da artista tenta sempre direcionar o fluxo do líquido colorido, mas a água tem potência para seguir direções próprias. O acaso e o inesperado fazem parte da realização dessas telas, tanto quanto o acaso e o inesperado fazem parte da vida. Neste atual processo, Sandra Cinto tem de enfrentar as contingências – tanto na arte, quanto no seu cotidiano. Cabe à artista tentar obter sucesso na sua ação, lidando com as contingências. Subjugar-se à força da natureza, porém insistindo na potência do fazer artístico.
A mancha – cor – azul é que dará as indicações para o (des) aparecimento do desenho das rochas, é ela que delimitará o espaço a ser ocupado pelas canetas. Manchas e linhas, numa dança graciosa e íntima de esconder e entrever. Caberá à artista saber ver e escutar as manchas, descobrir as possibilidades abertas por elas e assumir a coautoria do trabalho. Estabelece-se, assim, uma estratégia artística para reunir o acaso posto pelo fluxo azul da água e a livre decisão de escolha da artista. Apresentam-se, assim, duas vontades para ocupar o plano e construir o espaço e para solucionar as relações entre cheio e vazio.
Pouca área sobra na parte superior das pinturas. O céu é uma faixa parcimoniosa, agora sem as nuvens, uma vez que elas se tornaram líquidas e passam a constituir a generosa cortina azul que ganha a proeminência nas telas. As áreas ocupadas e os pedaços em branco estabelecem valores pictóricos que atraem demoradamente o olhar. Se anteriormente as ondas do mar eram agitadas e revoltas, agora a cachoeira azul é lisa, transparente e calma. As pinturas ganham uma forte feição monocromática. Elas abrem lugar para o olhar afetuoso. Essas duas pinturas, colocadas frente a frente, expressam a lentidão do fazer e da fruição. Somos colocados diante de paisagens, em grandes panorâmicas, que oferecem um tempo lento: o azul convida a perscrutar; o movimento da cor esparramando-se para baixo é tranquilizador; e as pequenas partes de terra rochosa são riscadas com maior delicadeza.
Cabe indicar, para futuros estudos, que uma boa parte da obra de Sandra Cinto se presta a ser analisada a partir dos conceitos de vida líquida e vida em fragmentos, conforme colocações de Zygmunt Bauman, autor contemporâneo de vasta bibliografia.
Se, na fase anterior, uma visão trágica emergia, com a volúpia barroca das ondas em vigorosos movimentos, agora, nesta exposição, os três trabalhos convidam ao sossego da reflexão. Esse aspecto está explicitado na branca escultura-instalação “A ponte”, 2016, de mais ou menos 700 cm por 110 cm, tendo, de um lado, um cavalinho de brinquedo e, na outra ponta, uma cadeira de balanço. De um lado o lúdico e o infantil, do outro a solidão e a maturidade, talvez a velhice. “A ponte” constata o tempo cíclico e alerta para as permanentes travessias na arte e na vida. Convém lembrar que a ponte é um signo e uma forma recorrente na obra de Sandra Cinto, possíveis ou impossíveis de serem atravessadas, mas sempre presentes e inevitáveis. A ponte diz respeito a uma necessidade dos vivos em suas andanças e aventuras à beira dos precipícios, retomando Nietzsche.
Os trabalhos de Sandra Cinto pulsam a vontade de viver, reconhecendo seus limites e contingências. Numa formulação de Friedrich Nietzsche, essa vontade está apoiada numa proximidade da arte como jogo do artista e da criança, construindo e destruindo a inocência e fazendo da arte um meio de brincar consigo mesmo. A ponte, muitas vezes presente nos trabalhos de Sandra Cinto, carrega consigo essas possibilidades de construção e destruição. Ainda, a partir desse filósofo, pode-se considerar que a arte de Sandra Cinto é permeada por sensações, tendo por base um livre lirismo pessoal. E se a fase das ondas agitadas possui um tom dionisíaco, agora, em 2016, suas pinturas, desenhos e objetos aproximam-se de algo apolíneo. Cada vez mais a obra de Sandra Cinto vem reafirmando a potência de viver.
Há nessa artista uma verdade onírica que, entre outras possibilidades, pode ser rastreada, por ora, pela presença da água na produção dos seus trabalhos – seja a representação da água, seja o uso do elemento natural água. Gaston Bachelard, referindo-se à água e aos sonhos, escreve que esse líquido é um elemento poético, presente nos nossos arquétipos. Assim, deve-se considerar que as questões que envolvem a água, permitem uma maior aproximação com o mundo e melhor conhecimento da realidade. A água, que ao se olhar tinge nosso ser com uma melancolia especial, relaciona-se a interesses orgânicos, ao bem-estar e à libido.
Na obra de Sandra Cinto, continuando com Bachelard, em seus devaneios de artista–criança, a água, sempre presente, poderosa, preciosa e seminal é canalizada para a arte para criar um outro mundo, para pensar a mesma vida.
¹ Miguel Chaia - professor do Departamento de Política da PUC-SP, pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp), autor de artigos e livros sobre arte e arte brasileira.