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fevereiro 9, 2016
Cristina Salgado - No interior do tempo por Marcelo Campos
Cristina Salgado busca formas no interior do tempo. Mesmo sabendo que o que se exteriorizará serão imagens difusas, nascidas da intensidade de caber em desconforto num corpo. Vive-se, nas obras da artista, uma duração, uma passagem em “conformação incerta”, já que a potência da visualidade atravessará, sempre, ameaças. Em No interior do tempo, a artista inicia a pesquisa na descoberta de uma atlas de anatomia. As formas e imagens do corpo são de tal ordem surreais que acabam por se parecerem aos desenhos da artista. Com isso, Cristina intensifica algumas lâminas, realçando alguns cortes em ossos, tecidos, músculos, ao mesmo tempo em que apaga outros tantos. Da nomenclatura científica, sobram “poemas visíveis”, como ela os denomina. Criam-se, então, poemas simbolistas, mallarmaicos, com palavras que se conscientizam e criam sentido no espaço ao redor. Os espaços aqui apresentados são intermediários. Das imagens anatômicas surgem órgãos inteiros e repetidos, olhos, bocas, narizes, cabelos.
Esta exposição, assim, trata de situações que se misturam entre visibilidade e sombra, formas e tempo, o exprimir e o silêncio. Tal mudez parte, antes de tudo, da perplexidade de o trabalho de Cristina Salgado se predispor a mímicas, “gestos que já são desenhos”, unindo-se quase como a escrita e a oralidade. Há sons? E esta pergunta se fundamenta quando constatamos que se houver sons estes habitariam, também, o interior do tempo, o ultrassom. A paisagem não será ouvida. Nada se assemelhará à evocação das tormentas ou da calmaria.
O que a ciência procura exibir é o “não visto dos instantes perdidos”. Perdidos pela ignorância, mas, também pela passagem do tempo, pelo envelhecimento, pela mudança de estado. E, assim, o corpo vai perdendo as pontas, abandonando seus contornos regulares.
Há em toda a pesquisa aqui apresentada um ir e vir de referências, uma antiga metalúrgica, o mobiliário inexplicável, trabalhos de momentos distintos da carreira da artista. Sobretudo, vemos a escolha por certa aridez, o que, imediatamente, coloca as paisagens no lugar de miragens. Tal secura da matéria se condiciona a um tempo paradoxal, aquele indiscernível entre passado e futuro, onde as coisas parecem límpidas na sua clareza exprimível, mas ruínas na aparência de certa expiração. Tudo pode expirar. Ainda mais para uma sociedade vigilante “que marca horas iguais para todos”, desejando a captura dos instantes. A mesma sociedade que não percebe na onisciência, nos olhos que tudo vêem, uma confrontação com o tempo que passa.
Nos filmes de Cristina Salgado, a repetição da natureza - o mar batendo nas pedras ou em continuidade, sem gesto, sem horizonte - almeja a permanência, já que o desejo de movimento será, sempre, o desejo de inércia, “de ver chegar o que permanece”.
E assim, a artista lida com técnicas de anulação, justamente em imagens que parecem tudo revelar: os interiores, a nomenclatura epitelial, as divisões mais inalcançáveis. Estamos, então, diante de mobiliários sem conteúdos e de desenhos do corpo sem a proteção da pele. Aqui, a artista nos impõe um contato direto, onde a ergonomia, por exemplo, não foi contemplada. Como habitar cadeiras que parecem não prever a presença do corpo, já que se impõem estreitas, altas, rentes em demasia? Diante de tal cena, podemos concordar que “ser não é habitar”.
A isto, esta exposição se propõe, tratando o espaço como se fosse um depois, uma des-possessão. E, por isso, não haverá guardados, nada para cobrir as prateleiras. Antes de tudo, os dias e os sonhos serão a única possibilidade de separação dos mundos, não mais a posse de formas, mas, antes, a busca no interior do tempo.
Toda libertação do poder, como nos ensina Paul Virilio, será, sempre, formulada por técnicas de desaparição.
Marcelo Campos, 2015