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fevereiro 9, 2016
Bruno Miguel - Essas pessoas na sala de jantar por Bernardo Mosqueira
(ao meu amor)
No dia 5 de novembro de 2015, duas barragens que continham rejeitos de mineração se romperam na cidade de Mariana em Minas Gerais gerando um rastro de destruição, devastando vilas inteiras, pondo fim violentamente à vida de moradores e causando aquele que já é considerado o maior crime ambiental da história do Brasil. A negligência da mineradora Samarco, além de causar os assassinatos imediatos de seres humanos por afogamento em barro químico, colocou também todo o rio Doce em risco de morte. Graças às ambições irresponsáveis dessa joint-venture entre a Vale (ex- “do Rio Doce”) e a anglo-australiana BHP Billiton, não é mais possível captar água do rio para consumo, e mesmo a produção de energia nas usinas hidrelétricas locais foi paralisada. Agora, metais pesados, como alumínio, ferro, manganês e mercúrio, compõem a lama tóxica que percorrerá por volta de 600 quilômetros até chegar ao oceano, carregando também toneladas de árvores, peixes e outros animais mortos. O impacto nocivo dessa tragédia no meio ambiente, na subsistência das pequenas comunidades e na economia da região é assolador.
Tudo o que o humano realiza o faz como expressão da técnica, faz como paisagem, na paisagem e a partir da paisagem. Todas as transformações físicas que operamos sobre a terra (plantações, construções, utensílios, arte) acontecem para responder às necessidades humanas mais fundamentais – alimentar-se, proteger-se, movimentar-se, relacionar-se – e fazer uso individual ou coletivo de objetos físicos e simbólicos.
Desde 2010, Bruno Miguel vem frequentando leilões, antiquários e lojas de antiguidades para coletar pratos, copos e outros tipos de objetos domésticos funcionais e decorativos que lhe fossem especialmente interessantes. As peças de vidro e cristal foram combinadas e preenchidas com resina de poliéster para criar as cerca de 150 peças da instalação Cristaleira. A obra Essas pessoas na sala de jantar é formada por quatro centenas de composições constituídas por utensílios de louça (bules, xícaras, pires, manteigueiras e sopeiras), espuma de poliuretano, pequenas árvores artificiais, papel machê e tintas de cores vibrantes. Enquanto a verticalidade dos encaixes dos objetos da Cristaleira remete necessariamente ao esforço originário daquilo que erguemos do chão, cada um dos objetos de Essas pessoas na sala de jantar pode parecer uma ilha, um monte, uma erupção, um escorrer de lama – até mesmo de lama tóxica.
A pesquisa de Bruno Miguel, que além de artista tem atuação como professor de pintura, aponta bastante para os elementos característicos dessa técnica e de sua história. Se há anos Bruno vem investigando o gênero pictórico da paisagem, agora ele o relaciona também com a natureza-morta. O procedimento, no caso das obras de Essas pessoas na sala de jantar, é de criação de uma imagem a partir do contraste entre duas faturas. As louças em porcelana são reconhecidas como pertencentes ao contexto doméstico e familiar e estão relacionadas à ideia de refinamento e fragilidade; sua imagem é associada ao gênero da natureza-morta. Já os montes coloridos têm seus processos de criação semelhantes aos das alegorias de carnaval. São garridos, lúdicos, aparentemente fortes, e sua imagem é associada ao gênero da paisagem. O encontro entre elementos da cultura pop com referências de outras origens é um procedimento importante na produção de Bruno Miguel.
Na instalação Essas pessoas na sala de jantar, durante todo período de exposição, os objetos serão rearranjados no espaço, criando diferentes percursos pela sala. Se a música dos Mutantes “Panis et circensis” descreve a oposição entre um sujeito que age transformando o mundo e “as pessoas na sala de jantar” que “estão preocupadas em nascer e morrer”, podemos refletir sobre que tipos de atividade transformadora esses trabalhos podem inspirar como objetos simbólicos. Ao colocar a paisagem numa escala dos objetos de uso manual, Bruno pode avivar a consciência da nossa agência na relação com o meio, da necessidade imperativa de reflexão sobre as reais causas e sobre as possíveis extensões dos efeitos de nossas práticas. Afinal, barragens podem romper vidas. Além disso, em nosso tempo histórico, todo processo fantástico é exercício legítimo para que possamos vir a ser capazes de imaginar o que ainda não existe.
Na instalação mais recente, Cristaleira, Bruno se põe a investigar mais especificamente o gênero da natureza-morta. Nesse caso, os objetos circundam o público apoiados sobre prateleiras alinhadas, evidenciando o espaço vazio no centro da sala. Dispostos dessa forma, somos levados a refletir se a fragilidade, na verdade, não é nossa e se não seríamos nós essas pessoas preocupadas em nascer e morrer.
Bernardo Mosqueira, 2015