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setembro 30, 2015
Entradas, de Adriana Amaral, por Carolina Soares
Entradas, de Adriana Amaral
CAROLINA SOARES
No trabalho Entradas, de Adriana Amaral, as portas, em escala real, estão fechadas. A frontalidade com que se apresentam parece recusar desvios ou intromissões de quaisquer outros elementos a lhes roubar à atenção. Nós, observadores, somos, portanto, defrontados com diferentes estilos, formatos e tamanhos, com uma série de singularidades que, no entanto, se impõem por meio de uma dimensão menos física e mais simbólica. Isso porque, embora não escape o interesse pelas características materiais de cada uma, essas mesmas características parecem assumir o papel de estimular a imaginação a ingressar em um universo que diz respeito à intimidade.
O enquadramento escolhido pela artista parece remeter ao de um retrato de grande escala, talvez um produzido por Thomas Ruff que ao solicitar ao retratado que permaneça inexpressivo e olhando diretamente para câmera, oferece uma imagem que, mais que mero espelho, se quer real, como se à fotografia fosse concedida tal capacidade. A suposta fisicalidade com que cada porta se apresenta, assim como os retratos de Ruff, parece querer alcançar algo para além do que está sendo mostrado pela imagem, mas o que uma porta, em sua banalidade, poderia oferecer? Por qual razão Adriana Amaral escolhe como objeto de interesse retratar “portas”?
Em 2010, ao visitar o município de Cássia dos Coqueiros, no interior de São Paulo, a artista deparou-se com antigas portas do colégio em que estudara entre seus 6 e 8 anos de idade. A partir dali, deu início a reflexões sobre a maneira como as memórias se constituem, como um único objeto é capaz de despertar as mais diversas lembranças. E, conforme foi fotografando, outros aspectos subjacentes surgiam: as portas, agora isoladas do todo arquitetônico, pareciam fechar em si segredos, cumplicidades, projetos, intimidades, histórias confinados no interior de algum lugar que deixara de existir, a não ser como recordação.
Entradas não deixa de ressaltar que a memória distingui-se do hábito, representando a conquista progressiva pelo homem do seu passado individual. Na antiguidade grega, a deusa Mnemosine, filha de Urano e Gaia, era aquela que protegia do esquecimento. Era a divindade vivificadora frente aos perigos do esquecimento que na cosmogonia grega aparece como o rio Lete que cruza a morada dos mortos, o Tártaro. Segundo a mitologia, as almas que bebiam das águas do rio Lete quando estavam prestes a reencarnarem-se, esqueciam sua existência anterior.
Na recuperação de experiências contra o esquecimento, o que um dia fora realidade não deixa de ganhar um viés ficcional revogando a linha fronteiriça entre fato e ficção. Embora a artista decida pela fotografia, ainda assim o potencial narrativo que cada imagem traz em si se torna capaz de uma invenção ficcional a ser contada agora pelo observador. Cada porta, uma história. Por certo, portas são instrumentos de acesso para algum lugar, mas, ao nos apresentar muitas, sem delas excluir as peculiaridades, a artista também aponta para o espaço interno tão comumente preenchidos por vidas, por memórias que ali ficam resguardadas (Afinal: “O mundo real apaga-se de uma só vez, quando se vai viver na casa da lembrança. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa natal, a casa da intimidade absoluta, a casa onde se adquiriu o sentido da intimidade?” assim investiga Gaston Bachelard).
Mas as portas estão fechadas. Se abertas talvez fossem intrusivas, pois o acesso ao espaço íntimo impõe limites muitas vezes intransponíveis. As fachadas das portas autorizam a imaginação inferir sobre a casa, mas apenas inferir, afinal, ainda há fronteiras entre o público e o privado que não se deixam facilmente banalizar.
Carolina Soares é graduada (1999) em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo pela Univesidade Federal do Ceará. Especialização (2001) pela Falmouth College of Arts, Inglaterra, na linha de pesquisa Photographic Metaphor and Culture. Mestre (2006) pelo programa História, Teoria e Crítica da Arte da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo com a dissertação "Coleção Pirelli Masp de Fotografia - Fragmentos de uma memória". Doutora (2011) pela mesma instituição onde desenvolveu a tese "Uma bricolagem virtual infinita: A representação do indígena no trabalho de Claudia Andujar (1960/ 70)". Integra desde 2004, o Grupo de Estudos Arte & Fotografia da ECA USP, coordenado pelo Prof. Dr. Domingos Tadeu Chiarelli. De 2006 a 2008, trabalhou no Museu de Arte de São Paulo. Integrou a equipe de pesquisa da 28° Bienal de São Paulo. 2010 a 2011, coordenou, junto com Thaís Rivitti e Marcelo Amorim, o Ateliê397. Dentre as curadorias estão: Fotografia em perspectiva: acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo. MAM-SP, 2007; Realidades imprecisas, Sesc Pinheiros, São Paulo, 2009; A 4°do Equador, Ateliê397, São Paulo, 2011; Ficções (individual de Nino Cais), Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza, 2012. É coordenadora de conteúdos da Base7 Projetos Culturais onde desenvolve projetos de pesquisa em cultura, museus e artes visuais assim como projetos editoriais.